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quarta-feira, 16 de março de 2011

Ouvir quem sabe do nosso país

António Barreto
Sociólogo, presidente da Fundação Manuel dos Santos, apaixonado por fotografia e viagens, fala sobre a vida e a morte, sobre viagens de comboio … e, evidentemente, de Portugal no momento presente.
António Barreto lançou há um ano a Pordata: uma base de dados sobre Portugal contemporâneo. Além da Pordata, dos livros low cost e de conferências, tem em mãos diversos projectos. Dois sobre Saúde, seis sobre Educação, seis sobre Justiça: “Estamos a estudar – explica o sociólogo – os manuais de matemática, os de português, os custos da saúde, o segredo de Justiça, a fazer um enorme inquérito sobre a relação entre valores culturais, religião, tradições, democracia, Governo e desenvolvimento económico, e a estudar o que renderam 30 anos de fundos europeus”.
A sua maneira de ver a escola é muito clara: “O que é uma escola? É um sítio onde as meninas vão a correr e os cavalos a saltar e coisas desse género. Isso é uma estupidez total. É um sítio onde se aprende por prazer? Isso é uma total estupidez. Aprender não é lúdico, é trabalho, é esforço”.
Sobre o desenvolvimento económico de Portugal, António Barreto não hesita em apontar caminhos: “Devíamos gastar milhões por ano com o desenvolvimento florestal, com o tratamento das doenças da floresta, do pinheiro, do sobreiro. Não fazemos nada disso, ou quase nada. Devíamos gastar com o mar. Há 30 anos que deixámos de investir no mar ou de gastar com o peixe. Há um único caso em que, em 30 ou 40 anos, Portugal conseguiu vencer em quase todas as frentes, que é o caso do vinho. E curiosamente, no vinho o Estado não meteu o bedelho. Foram os empresários, os técnicos, os enólogos que criaram dezenas de boas empresas, dezenas de bons vinhos que são vendidos no mundo inteiro, que ganham prémios”.
Ficou na memória de todos o discurso que pronunciou nas comemorações oficiais do 10 de Junho de 2009, em que afirmou sem meias palavras que o exemplo que damos na vida vale muito mais que as palavras que dizemos ou escrevemos. “O meu discurso – explica António Barreto - era especialmente para os dirigentes portugueses, para os líderes partidários, os dirigentes políticos, militares, empresariais e sindicais, porque é de cima que vem o exemplo. O bom e o mau. Tantas vezes ouço apelos desses dirigentes à população para que trabalhe mais, aperte o cinto, corra riscos, inove, chegue a horas, seja honesta, etc., e tantas vezes vejo os exemplos exactamente ao contrário... Não sei se fui ouvido, mas era essa a intenção”.
Não pretende ser moralista e muito menos apresentar-se como modelo. Mas custa-lhe assistir à dissolução de antigos valores morais, que eram sólidos e deixaram de o ser. Por exemplo, diz o sociólogo: “A palavra dada. A honradez. Hoje em dia pedir a alguém que seja honrado, que seja honesto, provoca geralmente sorrisos. As pessoas acham que é lírico, que é do século XIX. Sim. Mas a honradez é uma boa virtude. Tento sistematicamente ser honrado. Não sei se serei sempre, ou se poderei ser sempre, mas nunca deixo de o tentar. Por outro lado, assistimos a outra coisa mais arrepiante que é cada pessoa fazer a sua própria moral”.
Mesmo se para tanta gente é sinal de modernidade, cada um seguir critérios éticos somente à sua medida, António Barreto não tem receio de denunciar: ”É terrível, porque isto quer dizer que o princípio e o fim dos seus critérios de acção, pensamento e valores são eles próprios. Como se cada qual tivesse direito a ter a sua própria moral. Se uma pessoa rouba, mata, é responsável por fraudes, diz mentiras ou engana os outros mas diz: ‘Estou muito bem com a minha consciência e isso é o que interessa’, isso não pode ser verdade”.
Os valores comuns não são imutáveis, estão sempre ligeiramente em mudança, mas vão acompanhando a tradição filosófica, política e cultural ao longo dos tempos. Tudo isto vai criando novos valores morais e éticos que duram muito tempo. Não há valores definitivos, nem pode haver. A moral pública hoje é diferente do que era há 100 ou 200 anos, mas é uma construção colectiva dos povos, das nações, dos estados, das culturas, do pensamento. “Mas não pode resumir-se – insiste António Barreto - ao código moral de cada um. Todas as pessoas podem dizer que estão de acordo com o seu próprio código moral, até o Al Capone! Está a tornar-se comum a todos os dirigentes portugueses estarem bem com a sua consciência individual. Isto é aterrador!”.
Confessa que vive simultaneamente feliz e insatisfeito. A coisa que mais gostava no mundo era cantar, mas não tem ouvido. Voz até talvez tenha, mas falta-lhe talento. Também gostava de ser um grande fotógrafo. Para o ser precisaria de dedicar muito mais tempo à fotografia, mesmo se tem belas fotografias e muitas publicadas em livro. Gostava de ter escrito um romance. Fez a maior parte das viagens que desejava fazer. As melhores, para António Barreto, foram as de comboio: “É a melhor maneira de viajar que existe no mundo. Não há nada que se compare. Podemos estar de pé, sentados, passear, andar, namorar, dormir, entrar e sair várias vezes, comer, ler, fotografar, ver a paisagem, jogar, beber, conhecer pessoas... Muitas destas coisas não se podem fazer no carro nem sequer no avião. Tem muito de romanesco, claro. Há muitos livros e muitos filmes passados em comboios, com crimes, amores e desamores vividos em comboios”.
Confessa-se não crente, mesmo se cresceu num ambiente católico. Depara-se muitas vezes com a pergunta sobre o sentido da vida, particularmente quando a morte leva alguém que ama. Conta a experiência da perda do irmão: “Era o meu irmão mais próximo na idade e durante vários anos vivemos juntos ou muito perto um do outro. Fiquei muito triste e sinto a falta dele, mas tenho tão boa memória dele e da minha vida com ele que é isso que me faz viver bem. E posso dizer o mesmo do meu pai, da minha mãe e de todas as pessoas que amei. Tive a bênção de viver muitos anos com o meu pai e a minha mãe, e isso foi uma verdadeira alegria”.
N.M.
(Baseado nas entrevistas ao Jornal I de 17.04.2010, 22.08.2009 e ao Expresso de 05.03.2011)

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