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Convite a quem nos visita

sábado, 30 de abril de 2016

Regresso

Para o nosso fim de semana. Sejam felizes sempre sem prejudicar ninguém.
Se me compenetro solitário
sobre um silêncio de uma mesa
regresso ao momento daquele
sorriso enrugado pelo tempo
e pelo trabalho incansável da terra
onde aquele avô semeava pão
por Deus e à sua conta
que as outras mãos femininas
da avó preparavam antes do encontro
naquele altar sagrado e divino
sobre a mesa da ceia eucarística
entre irmãos que degustavam
o convívio da alma daquela casa.

Pois se regresso a esse mundo antigo
quase que choro sentida uma saudade
daquele olhar miudinho encostado
ao bordão da esperança
incensada pelo fumo claro e aromático
por entre os dedos acastanhados
pelos cigarros Santa Maria
que nos valia a alegria nos portais das casas
sentados sobre as pedras rudes e vivas
do basalto irregular no cimo das paredes
nas tardes de domingo.

O poema que me transporta à infância
por mais que a ele regresse
nunca nele transparece
toda a densidade
que vi naqueles rostos harmoniosos
de uma gente que a terra segurou ao chão
eternamente neste pobre coração.
José Luís Rodrigues

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Onde é que isto vai parar?

Manchete do Dnotícias, 29 de abril de 2016
Tenho sérias dúvidas quanto a esta iniciativa. Não compreendo que um serviço público tenha que prestar a conta a cada cidadão que dele se sirva, quando a vocação única desse organismo é estar ao serviço do cidadão. Que o faça em termos gerais, muito bem, deve fazê-lo em nome da transparência democrática, podendo até fazê-lo quanto ao gasto que é feito em média por cada cidadão que dele usufrua.
Mas a ser feito a cada cidadão com cabeçalho a apresentar o seu nome, morada e outros, não me parece boa política. Aqui temos um mau exemplo e pode fazer suscitar os piores sentimentos de uns cidadãos em relação a outros. Uns mais gastadores, outros menos, uns merecerão e outros não. Os ciúmes, invejas e revoltas de uns contra os outros não tardarão.
Os serviços públicos tendencialmente gratuitos são pagos por todos os contribuintes para que tal serviço esteja para todos os cidadãos. Esta é uma solidariedade organizada que merece ser respeitada e que ninguém tem o direito de pôr em causa. Estes serviços são universais e ponto final. Ainda mais se falamos nos serviços respeitantes à saúde.
Não venham agora com medidas avulso prejudiciais para os bons sentimentos dos cidadãos, que há muito tempo compreenderam que os serviços públicos de saúde são pagos por todos nós e que funcionam o mais universal possível. Mais ainda não podem em nome de algo que não sabemos o quê, implementar medidas deste género para esconder a anarquia em que mergulhou o Serviço Regional de Saúde e os disparates levados a cabo pelos irresponsáveis que no governo e nos hospitais andaram a fazer durante os últimos anos.
Mas, se for para contabilizar tudo e escarrapachar a conta ao cidadão individualmente, então que se faça em tudo e com todos os serviços públicos. Também devem os cidadãos apresentar a conta ao Estado pelas demoras infindáveis quando solicitam o atendimento dos diversos serviços, especialmente, as horas infindáveis que levam para atender uma pessoa nas urgências dos hospitais. Que os prejudicados façam as contas das horas que perdem nessas demoras (tempo é dinheiro, lembram-se?) tanto as vítimas como os seus acompanhantes. Que sejam apresentadas todas as contas dos prejuízos que os serviços tantas vezes fazem acontecer porque não cumprem a tempo e horas o que lhes foi solicitado.
Parece que é melhor estarem quietos e não levantem precedentes patéticos para que não surjam dissabores graves para quem está à frente dos balcões a atender os cidadãos, porque senão é caso para perguntarmos, onde é que isto vai parar?   

O Paráclito

Comentário para a missa deste domingo VI da Páscoa. Servem para quem habitualmente vai à igreja e não só.
O Paráclito é o defensor. O advogado de defesa se preferimos um conceito mais próximo dos nossos dias. É este mistério silencioso que nos acompanha desde sempre. Realidade de amor, do amor de Deus. E tudo o que é do amor é misterioso, carregado de silêncio, mas criativo e aberto ao assombro da vida no encontro com os outros.
Nos tempos da vida prática de Jesus alguns julgamentos eram realizados do seguinte modo. Reuniam uma grande assembleia para julgar alguma pessoa que tivesse cometido algum crime. O juiz que presidia ao julgamento em determinado momento perguntava a assembleia se haveria alguém disposto a defender o criminoso, se alguém se levantasse, saía do seu lugar e colocava-se ao lado do réu, esta pessoa assumia a sua defesa, por isso, recebia a designação de Paráclito.
Jesus, ao falar do Espírito Santo, apresentando-o como defensor dos seus discípulos, pegou na figura do Paráclito, sobejamente conhecido por todos, para ensinar o que seria o Espírito Santo, o defensor de todos os que assumissem a missão do anúncio do Reino de Jesus. Este é o único Espírito que salva e que pode dar garantias de futuro. Nada nos deve demover desta procura.
O Espírito de Deus é um caminho de salvação que nos garante uma possibilidade de encontro para sermos felizes e ganharmos coragem para defender com tenacidade as causas em que nos envolvemos. Então, se muitas coisas falham, é porque nos falta o Espírito que nos remeta para o interior, porque de exterioridades estamos mais que saturados, para que aí nos encontremos para buscar o essencial que nos leve ao encontro com os outros, isto é, todos aqueles que Deus nos coloca diante da vida para realizarmos o amor na «luta» pela justiça e pelo bem comum.
Que o Espírito de Deus nos faça sempre novos na criatividade que o amor em nós sempre proporciona. Pois, que nos livre do egoísmo, da ganância de que pode ser possível sermos gente sem mais ninguém e que a luz do coração nos revele sempre sabedoria para levarmos à prática na relação com os outros o alerta de Saint-Exupéry: «Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos». Deixemos então que o que somos e o que realizamos pelas tarefas do dia a dia sejam guiadas por essa realidade interior, mesmo que cheia de mistério, mas se tomada como essencial, condimenta o nosso mundo com a grandeza da felicidade e do bem para todos.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Para arrancar um sorriso hoje e todos os dias

Hoje dizem que é o dia mundial do sorriso. Então porque estou vivo sorriu hoje e todos os dias enquanto a vida permitir que essa dádiva seja possível. Porque:
Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.

Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.

Deseje às coisas celestes, Que sempre duram;
Fiel e rico em promessas, Deus não muda.
Ama-o como merece, Bondade Imensa;
Quem a Deus tem, Mesmo que passe por momentos difíceis;
Sendo Deus o seu tesouro, Nada lhe falta.
SÓ DEUS BASTA!
Santa Tereza D'Ávila 

Valorizar tudo o que temos agora

O que é mais dramático nesta vida é precisamente, nos agarrarmos tanto a ela como se fossemos eternos neste mundo. Não há garantia nenhuma quanto a isso. Mas disfarçamos, para que essa verdade nunca nos convença. Por isso, sofremos muito, choramos muito quando acontecem as perdas. E porque as perdemos, fazemos com que elas tenham sido e sejam o mais importante do mundo para nós, eram indispensáveis e sempre são boas depois de já não as termos. É uma certa hipocrisia compensatória que vai preenchendo o vazio e a saudade que tais perdas sempre vão deixando. O que se diz dos mortos é bem revelador. O espírito dos mortos deve rir a bandeiras despregadas. É pena que não possamos ter essa visão, que nos poria em sentido, face à figura triste que tantas vezes fazemos.
São Paulo é bem claro quanto ao que devia orientar o pensamento e a conduta de cada um de nós enquanto nos é permitido andarmos por aqui, para que fossemos capazes de dar mais valor o que temos agora e com quem estamos agora. Diz assim, o maior autor de epístolas bíblico: «Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas» (2 Cor 4, 18). Um pensamento brilhante e que nos deveria convencer de que a realidade daqui é sempre a prazo, com dores e prazeres, com esperança e desesperança, com amor e desamor, com mentira e verdade, com paz e guerra, com ganhos e perdas… Aliás, com tudo o que faz parte deste mundo, que sempre faz manifestar mais o que miserável em detrimento do que é mais belo e glorioso.
Neste sentido, falta-nos compreender que esta vida, precisa que paremos e que passemos a usar mais cabeça conjugada com a riqueza do coração para que cada dia que passa, sejamos gente ao lado de gente, pessoas com alma... Não precisamos de ser sempre materialistas nem muito menos sempre espiritualistas ou espirituais. O mundo não se faz com materialistas e espiritualistas, esse dualismo não serve o mundo nem faz bem à vida. Faz-se a vida, a nossa vida entre uma coisa e outra, que se liga por um fosso, para o qual não temos explicação. Estamos aí nesse fosse misterioso, sem explicação, o que nos vai ajudar a gostarmos muito deste mundo, convencidos que estamos a prazo nesta estadia por aqui.
Assim sendo, estou seguro que podemos começar a valorizar mais as coisas e as pessoas agora e não apenas depois quando as perdemos.  

terça-feira, 26 de abril de 2016

Mensagem do Papa Francisco: Ser Feliz

A felicidade é o maior bem que Deus nos concede. O caminho cristão é um modo de ser feliz. A vida não teria sabor se assenta numa ninharia e se está resumida ao puro consumo. A lógica dos bens materiais não realiza ninguém e apenas ocupa o coração, mas não dá resposta ao sentido da vida.
As eternas questões que acompanham a natureza humana – Donde viemos?; o que somos? E para onde vamos?... – Não estão em pacote nas prateleiras bem recheadas dos nossos supermercados.
Como fundamento para proclamar que o ser cristão equivale a ser feliz. O Anjo quando anuncia a Maria, que Ela era bendita diante de Deus, e, por isso, tinha sido eleita para ser a mãe do salvador. As palavras são as seguintes: «Alegra-te, cheia de graça!...» (Lc 1, 28). A resposta de Maria também será exemplar, porque nos ensina profundamente como a fé só faz sentido porque é mediação de felicidade. As suas palavras, são o som da riqueza espiritual alguma vez pronunciadas. Escutemos esse ressoar antigo, mas sempre muito actual: «A minha alma proclama a grandeza do Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,...» (Lc 1, 46s). A densidade desta resposta à proposta de Deus fala por si mesma. O Papa Francisco com a seguinte mensagem convocando-nos para o desafio «ser feliz!», diz bem que pode ser possível, basta que cada um de nós se deixe guiar pela força do «querer é poder»...

Podes ter defeitos, estar ansioso e viver irritado algumas vezes, mas não te esqueças que a tua vida é a maior empresa do mundo.
Só tu podes evitar que ela vá em decadência.
Há muitos que te apreciam, admiram e te querem.
Gostaria que recordasses que ser feliz, não é ter um céu sem tempestades, caminho sem acidentes, trabalhos sem fadiga, relacionamentos sem decepções.
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros.
Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas também refletir sobre a tristeza.
Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos.
Não é apenas ter alegria com os aplausos, mas ter alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz não é uma fatalidade do destino, mas uma conquista de quem sabe viajar para dentro do seu próprio ser.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar ator da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no longínquo de nossa alma.
É agradecer a Deus cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que seja injusta.
É beijar os filhos, mimar aos pais, ter momentos poéticos com os amigos, mesmo que eles nos magoem.
Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples, que vive dentro de cada um de nós.
É ter maturidade para dizer ‘enganei-me’.
É ter a ousadia para dizer ‘perdoa-me’.
É ter sensibilidade para expressar ‘preciso de ti’.
É ter capacidade de dizer ‘amo-te’.
Que tua vida se torne um jardim de oportunidades para ser feliz…
Que nas tuas primaveras sejas amante da alegria.
Que nos teus invernos sejas amigo da sabedoria.
E que quando te enganares no caminho, comeces tudo de novo.
Pois assim serás mais apaixonado pela vida.
E podes facilmente encontrar novamente que ser feliz não é ter uma vida perfeita.
Mas usar as lágrimas para regar a tolerância.
Usar as perdas para refinar a paciência.
Usar as falhas para esculpir a serenidade.
Usar a dor para lapidar o prazer.
Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.
Nunca desistas….
Nunca desistas das pessoas que amas.
Nunca desistas de ser feliz, pois a vida é um espectáculo imperdível!

Eduardo Lourenço o senhor pensamento

Um diálogo com o pensador Eduardo Lourenço e a jornalista Fátima Campos Ferreira gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Vários foram os temas que por ali perpassaram: o silêncio, o mundo em geral hoje, o pensamento, a Europa, o regresso à infância, a adolescência, a juventude, o nosso país (a sua história, o presente e futuro), a perda, o que somos, para onde vamos, para que estamos, a morte... Tudo tão excelente, por isso, um diálogo imperdível.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A liberdade

"Já não vos chamo servos, mas amigos" (Jo 15, 15).
- Eis a liberdade. A minha liberdade.

Quando é um poema que canta o sonho
porém letra a letra cozinhada
o acompanha
é uma palavra apenas.

O poema emerge
é o dom maior que o céu nos deu
nada se igual à liberdade
se nos faz responsáveis para a amizade
como o poema conjugado
no canto solene do ideal.

Vamos sempre lá neste dia
onde os cravos foram balas
e a palavra para sempre liberdade
- que hoje para a amanhã
somos desejo e vontade de participar
nesta luta sem tréguas
contra a fome ingente
que o sonho frustrou
a tanta gente.

Acordemos e sejamos liberdade
ideal presente e conseguido
à mesa da fraternidade.

Viva o sonho. Viva a liberdade.
Viva o 25 de abril sempre.
JLR

sábado, 23 de abril de 2016

Razão encharcada

Para o nosso fim de semana. Sejam felizes sempre sem prejudicar ninguém.
Águas mil no chão do mundo
que se desprendem dos céus
e copiosamente humedecem
a terra sobre as mãos.
O caudal do desejo
vê-se irrigado pelo sangue
que as artérias da cidade
fazem passar todas as gentes
do mundo que os gigantes dos mares
trouxeram de longe.
Então vimos uma água fértil
calando os campos do tempo
memória estranha neste presente
que em mim faz uma sensação indolente,
foi sentido o silêncio ao longe e ao alto
onde estou e como sou
é o tesouro da razão o que restou.
José Luís Rodrigues

Dois génios subiram ao céu no mesmo dia

Dois pilares da literatura mundial… 
Shakespeare: «A alegria evita mil males e prolonga a vida».
Cervantes: «Andar por terras distantes e conversar com diversas pessoas torna os homens ponderados».
 A 23 de abril de 1616 – há exatos 400 anos – houve festa no céu. Com certeza, um grande sarau literário. Naquela data, dois gênios da literatura universal deixaram o nosso mundo, que tão bem retratam em suas obras: o inglês William Shakespeare e o espanhol Miguel de Cervantes.
Se considerarmos que o calendário gregoriano havia sido adotado no reino de Castela desde o século XVI, e pela Inglaterra apenas em 1751, Shakespeare teria vivido 10 dias a mais do que Cervantes.
Shakespeare, nascido em 1564, viveu 51 anos. Cervantes, nascido em 1547, 68. Talvez os dois tenham se admirado com a coincidência de data ao se evadirem dessa Terra tão atribulada, e felizes por, afinal, se conhecerem pessoalmente. E exultaram se comungavam a esperança expressada, séculos mais tarde, por Jorge Luis Borges: "Sempre imaginei que o Paraíso fosse uma espécie de biblioteca.” Espero que sim, pois nesse curto período de vida é impossível ler todos os livros que me atraem.
Cervantes, com sua obra-prima, Dom Quixote de la Mancha, é considerado o pai do romance moderno. Assim como a obra de Shakespeare consolidou o idioma inglês, a de Cervantes produziu o mesmo efeito no espanhol.
Em 1569, aos 22 anos, Cervantes se refugiou na Itália, após ferir um desafeto com quem duelou. Em 1571, participou da batalha de Lepanto, quando a esquadra formada por países cristãos derrotou os soldados do Império Otomano, de fé islâmica. Ferido, ficou com a mão esquerda inutilizada.
Além da coincidência de falecerem na mesma data, Shakespeare e Cervantes foram mestres no modo de tratar temas políticos com refinado talento artístico e, ao mesmo tempo, dissecar as profundezas da alma humana.
Frei Betto, in Adital 23/04/2016

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O Brasil converte a corrupção em espectáculo

«O New York Times de 15 de abril escreveu: "Ela não roubou nada, mas está sendo julgada por uma quadrilha de ladrões"».

O espectáculo degradante a que se prestou o Brasil nos últimos dias contr ao impedimento de Dilma Rousseff. O Teólogo Leonardo Boff escreveu um texto muito interessante onde faz a sua leitura sobre as várias manifestações e propósitos dos deputados que votaram largamente contra o impedimento. 
Destaco o seguinte e AQUI NESTE LINK  podem ler o texto na íntegra:
«Importa notar um fato preocupante: emergiu novamente como um espantalho a velha campanha que reforçou o golpe militar de 1964: as marchas da religião, da família, de Deus e contra a corrupção. Dezenas de parlamentares da bancada evangélica claramente fizeram discursos de tom religioso e invocando o nome de de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão. Grande parte dos parlamentares de forma pueril dedicavam seu voto à família, à esposa, à avó, aos filhos e aos netos, citando seus nomes, numa espetacularização da política de reles banalidade. Ao contrário, aqueles contra o impedimento argumentavam e mostravam um comportamento decente». 

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O desafio da amizade todos os dias

Para quem vai à missa no fim de semana e não só. Domingo V da Páscoa
O Evangelho de São João, deste domingo V da Páscoa, apresenta-nos o mandamento novo de Jesus: «Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros». Não é fácil cumprir este mandamento que Jesus nos manda viver. A nossa vida está tão repleta de tantas coisas complexas demais que se torna, por vezes, impossível corresponder ao mandato de Cristo. Todos temos experiências de relação com as pessoas que vamos encontrando, que nos marcaram profundamente para o bem e para o mal.
No entanto, cada um deve em primeiro lugar ser capaz de acolher todos aqueles que Deus colocou na sua vida e amá-los profundamente. Dessa forma, já viveremos o mandamento novo que Jesus nos ensina. Os contextos mais difíceis do mundo são o melhor lugar para viver o amor.
Primeiro que tudo, devem estar no nosso coração todos os que a vida nos ofereceu como membros da nossa família, do trabalho, da opção de vida e de todas as caminhadas que encetamos.
Logo depois, somos desafiados a viver o amor para com todos aqueles que se cruzam connosco no dia a dia. A esta forma de vida não se chama ingenuidade ou inocência doentia, mas disponibilidade para a vivência da felicidade pessoal e dos outros. Não devemos aceitar todas as patetices e asneiradas dos outros, mas somos chamados a acolher, compreender e perdoar. O Papa Francisco diz desta forma o essencial sobre o que devemos fazer nas errâncias quotidianas: «Ponha amor e a sua vida será como uma casa construída na rocha».
O poeta Herberto Helder alinhou com o jogo sublime das palavras a grandeza da amizade, que nos revelou este momento tão improvável: «Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. / Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, / com os livros atrás a arder para toda a eternidade. / Não os chamo, e eles voltam-se profundamente / dentro do fogo. / - Temos um talento doloroso e obscuro. / Construímos um lugar de silêncio. / De paixão». (Herberto Helder, Ofício Cantante, in POESIA COMPLETA).
O amor que Jesus nos manda viver como elemento essencial do seu Reino passa pela entrega ao serviço dos outros e pelo acolher a todos como irmãos, amigos. O reino de Jesus Cristo está identificado pela fraternidade. Até podemos definir a religião cristã como uma fraternidade. Ninguém se pode dizer cristão se não vive na base da amizade e da abertura aos outros como irmãos como valor fundamental da sua vida de todos os dias.
Talvez seja esta visão do cristianismo que nos leva a concluir que esta religião é difícil de ser vivida. No entanto, não devemos deixar que este pensamento nos atrofie a coragem ou a entrega à descoberta do essencial para a felicidade, ser fraterno.
Nesse «inferno» que às vezes pode ser a relação com os outros, pode ser que também esteja a descoberta outras vezes do céu. A fraternidade é o maior desafio deste mundo e da vida concreta de cada pessoa, porém, é essencial que faça parte deste mundo. Está mais que provado que a ausência deste valor tem levado a humanidade à tragédia. Por isso, mesmo que pouco bastava um pouco de prática do ensinamento de Jean Cocteu: «A felicidade de um amigo deleita-nos. Enriquece-nos. Não nos tira nada. Caso a amizade sofra com isso, é porque não existe». 

terça-feira, 19 de abril de 2016

Onde o amor não acontece Deus não existe

O dom supremo de Deus é o amor. Viver o amor verdadeiro e habitar num lugar onde se é sujeito na vivência do amor, conhecemos incondicionalmente a presença de Deus. A condição única de salvação, é a vida no amor, que não se consegue por simples meios humanos, como o confirma o apóstolo João: «Quem não amar não pode conhecer Deus, porque Deus é amor» (1Jo 4, 8).
O amor exorciza o medo e torna-nos livres diante do nosso ser e diante dos nossos semelhantes. Perante esta base, o amor é sempre um verdadeiro milagre. É sempre o dom que Deus dá de Si mesmo, é sempre uma experiência divina. Na comunidade de amor que pode ser a nossa, a presença de Deus é-nos oferecida sem preço algum livremente todos os dias. Se nos abrimos a esse milagre, podemos partilhá-lo com os outros em sinal de gratidão.
É que nós gastamos o coração e a inteligência com lógicas matreiras e maquinações interesseiras que nos perdem e nos envolvem no esquecimento fatal da perdição. O coração e a inteligência, segundo a perspectiva de Deus por Jesus Cristo, são para gastar no que é fundamental, isto é, no que salva e no que nos conduz ao Reino de Deus. Alguém proclamou que «quem economiza amor, morre pobre».
O amor de Deus é forte como a morte, dirá o Cântico dos Cânticos e onde não há amor ponha amor, dirá São João da Cruz. Pois, então, que melhores caminhos podemos delinear para nós próprios senão estes que requerem de nós um bom uso da liberdade, da inteligência, da alma e do coração.
Não devemos entregar-nos ao amor como se fosse um negócio com regras e condições, mas como o único modo que nos identifica com Jesus, o nosso mestre. William Shakespeare disse-o assim: «é um amor pobre aquele que se pode medir». O amor padronizado não existe. 
Desta forma compreendemos que o amor não é moeda de troca que requer condições, mas algo que nos envolve por dentro, nos anima e nos caracteriza totalmente. Só com esta forma de vida podemos descobrir a presença de Deus, pois Deus é amor, como nos ensina de forma extraordinária o apóstolo João.
O amor por Deus e pelos outros é um modo de ser, uma vida e um dom que se acolhe como manancial da bondade de Deus, que nos torna grandes não aqui no lugar desta vida material, mas lá no lugar do Reino de Deus. E sempre que não somos amor, matamos Deus ou testemunhamos que Ele não existe mesmo.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Precisamos do sentido da vida

Somos fruto do ambiente e a história pessoal de cada um tem muito que ver com as influências que o ambiente onde nasceu proporciona. 
Vejamos a história que nos conta António Alçada Baptista, no seu último livro, «A Cor dos Dias». Diz assim o autor: «Uma mulher na Guiné, ao ir buscar lenha, deixou o seu bebé no chão, à entrada da floresta, e o pequenino desapareceu. Passados, quatro anos, um caçador viu um rapazinho no meio de um bando de macacos. Organizou-se uma batida e o menino foi apanhado. Mas aí é que foi o pior. A criança ficou entregue aos cuidados da instituição que aquele senhor dirigia. Não conseguiram adaptá-lo minimamente aos costumes humanos. Para comer, tinham que lhe atar uma corda à perna e levá-lo à floresta. Não conseguiram que ele falasse e, passados dois anos, morreu».
Esta história ilustra bem a afirmação de como cada um de nós é fruto do ambiente e das circunstâncias onde nasceu e cresceu. São, no fundo, os outros que nos fazem. As influências externas a nós são muito importantes para a constituição da nossa idiossincrasia. Nada somos, sem o mundo à nossa volta. Não é possível imaginar uma vida sem os outros, sem amor aos outros e muito menos sem o amor que os outros tenham por nós. Ao contrário desta realidade, é a solidão e o abandono, que ditarão o drama mais cruel que o homem pode enfrentar. A vida não é sem a relação com os outros.
Porque se a nossa existência não é sem a dimensão social, o que seria sem aquilo que Deus nos deu, isto é, a nossa inteligência, as nossas qualidades e capacidades? – Somos o ambiente mais tudo aquilo que a criação nos presenteou. Tudo deve convergir para a formação de uma identidade própria, individual que deve ser valorizada e plenamente integrada no modo de ser de cada pessoa. Por isso, valorizemo-nos e valorizemos na melhor medida possível quem se achega a nós se vier por bem.

sábado, 16 de abril de 2016

Deste lado vejo uma noite

Para o nosso fim de semana. Sejam felizes sempre sem prejudica ninguém.
Estava acompanhado sobre uma tarde
Mandaste-me olhar com uma mão,
a vida escurecia um pouco
quando a solidão diz muito sobre o muro alto

a erva estava quase seca
como a ansiedade inatingível e forte

Estava disposto a morrer por qualquer coisa
que trazemos invisível na alma das folhas,
nos raios eternos das estrelas que desde
o princípio do meu mundo
os grandes blocos de gelo deslocaram:
umas vezes assustam esta alma vertical
e outras vezes sentia como desta vez
que a única forma de acompanhar-te na visão
é permitir que deste lado o meu coração bate
mesmo que seja noite. A nossa noite.
José Luís Rodrigues

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O que será um católico não praticante?

Católico não praticante, é uma expressão muito comum na linguagem de muita gente. Duvido que muitos saibam verdadeiramente o seu sentido. É moda dizer-se o que toda a gente diz. Porém, não é raro ver de muitos destes que se dizem católicos não praticantes andarem com velas na mão nas procissões, pagarem promessas e calcorrearem Igrejas a ver o self-service religioso mais bonito, barato e pouco ligado ao compromisso com a vida. Por isso, ouvirmos gente deste teor a considerar-se católico não praticante dá vontade de rir e são de uma incongruência atroz.
Noutro domínio considero mais interessante ouvir uma expressão mais inteligente, embora curiosa: «creio, mas não pratico!». Mas hoje parece ser a mais comum e enforma muitos ambientes das nossas sociedades. Não é possível crer sem praticar como não é possível ser católico sem praticar. E já agora só para vermos como se pode ter uma posição de grande elevação perante as coisas do acreditar, vale a pena citar aqui o escritor moçambicano Mia Couto, que estes dias andou pela Madeira e deixa-nos uma entrevista maravilhosa no JM: «Deus é a relação que mantenho com a própria vida. Nunca senti necessidade de venerar uma entidade, de rezar. Eu rezo quando conto as minhas histórias. Quando amo. E se existir esse Deus todo poderoso, sei que ele vai aceitar-me assim». Quem pode ousar dizer que não estamos perante um verdadeiro crente praticante?
A modalidade não praticante foi criada para tornar confortável algo que deveria exigir muito de quem crê e compromisso com a instituição que por tradição nos inseriram. Por isso, essa grande multidão, dos católicos não praticantes desejavam uma Igreja Católica mais ou menos como uma organização puramente mundana, sem valores morais, aceitando todas as loucuras relacionadas com a vida, particularmente, a banalidade da sexualidade e que os seus membros ditos por eles de praticantes, estivessem mais remetidos às sacristias e menos envolvidos na luta contra as injustiças.
O ser ganha consistência na ação. Ser católico não praticante é tão incoerente como ser outras coisas na vida e dizer que está fora delas: desportista não praticante; militante de um partido não praticante; escuteiro não praticante; vegetariano não praticante; esposo/esposa não praticante; apaixonando não praticante; devoto não praticante; amigo não praticante; sem abrigo não praticante; doido ou palerma não praticante; entre tantas coisas que esta vida tem e que nos obriga a sermos ou não sermos. Eis a questão…
Por isso mesmo amigos, quando se diz que a Igreja perde fiéis, estamos enganados. Não, ela perde infiéis e ainda bem. Nada mais normal sair de uma realidade com a qual não nos comprometemos. Quem quer ser fiel permanece e não inventa rótulos para se justificar. Ou somos ou não somos. Não apenas no âmbito da religião, mas em todas as coisas da nossa vida. Os mornos, Deus vomita-os, como ensina o Apocalipse.
Fazer parte de uma religião não é porque fica bonito. As modas passam com o tempo e com as pessoas. Fazer parte da Igreja Católica deve servir para descobrir a sua riqueza de mensagem e procurar ser militante, com sucessos e insucessos, com virtudes e falhas, na santidade e no pecado, mas sempre viver com alma o compromisso do amor.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Dar a vida para gerar ainda mais vida

Comentário para a quem vai à missa e não só neste domingo IV da Páscoa.
A voz de Jesus é uma voz que nos toca no mais fundo da existência e faz de cada pessoa humana, um caminho de realização do seu amor pela vida. A salvação não tem outra possibilidade senão essa do amor que Jesus nos oferece e nos manda viver em todos os momentos da nossa existência. O poeta Fernando Pessoa definiu tão bem cada momento da vida desta forma: «Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido».
No Evangelho de João aprendemos esta lição formidável que Deus nos deu através de Jesus. Deus é Pai e tomou-nos a todos como seus filhos, deu-nos a vida eterna, nunca havemos de morrer, nunca sairemos da mão de Deus, fomos dados a Jesus – Filho de Deus – para que com Ele nos tornássemos também filhos muito amados deste Deus que é Pai/Mãe, que Jesus nos mostra.
Outra coisa extraordinária que Jesus nos revela é que «Eu e o Pai, somos um só» – diz Jesus. Esta frase revela-nos como é forte a comunhão que existe entre o Deus Pai/Mãe e o Filho. Até hoje nenhum filho foi capaz de pronunciar uma coisa tão formidável em termos de relação entre paternidade/maternidade e filiação. Só Jesus, porque sabendo de onde vinha podia pronunciar esta riqueza de relação entre pai/mãe e filho.
Como viver hoje esta intimidade com Deus? – É o próprio Jesus que nos vai ensinar. Todos os que souberem escutar a sua voz irão aprender como viver essa intimidade de amor. Mas a nossa vida, por vezes, está tão envolta em necessidades ou na falta delas que não nos predispõe para um verdadeiro encontro de intimidade que Jesus nos oferece. As tribulações da vida não permitem descobrir a verdade dessa descoberta. Bastava que o pensamento de Bob Marley no iluminasse: «Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida». São tantos os lugares e os momentos da vida onde somos necessários. É preciso estar atento e ousar fazer.
Por isso, onde existe a teimosia soberba para a vivência constante do ódio e do rancor não pode haver lugar no coração para o encontro da intimidade de Deus nem pode haver predisposição para a escuta da voz do Senhor Jesus. Neste dom extraordinário que é a vida, Jesus convoca-nos para a procura do sentido último radicado na transcendência para que viver neste mundo não seja apenas estar sem horizonte, mas fixados no céu. Porque «A vida é maravilhosa se não se tem medo dela» (Charles Chaplin), não tenhamos medo da vida e vamos dar a vida para gerar ainda mais vida sempre.

terça-feira, 12 de abril de 2016

As normas e o discernimento

Exortação Apostólica Amoris Laetitia - Alegria do Amor:
Dois números muito significativos da Exortação Apostólica Amoris Laetitia (Alegria do Amor), onde é dada a resposta a quem mantém a teimosia que o documento deixa tudo na mesma nem muito menos aponta para nenhuma mudança. A meu ver parece-me precisamente o contrário, faz com que mudemos todos perante a realidade. Quem assim pensa esperava receitas bem definidas e delimitadas como tem sido hábito. Ou ainda proibições em nome do Deus das suas cabeças. O Papa Francisco sabiamente não envereda por esse caminho, inteligentemente coloca o desafio a cada crente, a cada católico, para que seja autor da mudança. Desengane-se quem considera que tudo ficará na mesma ou que não há nenhuma intenção de mudança. Leia-se estes dois números que apresente seguidamente e pense-se um pouco no significado de ter sido um Cardeal, filho de pais divorciados, a apresentar o documento.
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por todos. (...)
Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação».347 É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.348
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas.
É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja « para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas ».349
Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão».350 Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.351 O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento
e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».352
A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade.

A Zona Franca da Madeira. O que se passa?

No programa Prós e Contra de Fátima Campos Ferreira de ontem, a Zona Franca da Madeira, foi completamente arrasada. Se a nebulosa já era sombria sobre tudo o que se passa com a Zona Franca da Madeira, ontem ficou completamente negra. O autor do livro «Suite 605», João Pedro Martins, começa a sua intervenção com esta expressão aplicada à Zona Franca da Madeira, «é um bordel de negócios». Tudo ao contrário daquilo que nos têm feito crer, que é uma praça essencial para cobrar impostos, que tem muitas pessoas a trabalhar, que se não fosse a Zona Franca existir na Madeira morríamos todos de fome.
Face a isto devemos exigir como cidadãos responsáveis que a administração do Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), esclareça cabalmente todas estas observações negativas e que nos faça crer que todos os negócios que ali se realizam contribuem para o bem comum. Por isso, exige-se máxima transparência. Não basta que nos digam que a Zona Franca da Madeira não é um Offshore idêntico aos que escondem fortunas incalculável a coberto da fuga de impostos nos países de onde são originárias tais fortunas. Não chega de dizer que não se deve fazer confusão. Certo é que continuam as denúncias e acusações graves contra o CINM.
Precisamos de uma cabal clarificação. Por exemplo, reparemos nesta, entre tantas outras que por aí circulam: «Empresas como a Swatch, Pepsi, Dell ou American British Tobacco têm representações na Madeira com esse objectivo. Os madeirenses nada lucram, já que as centenas empresas fictícias não criam um posto de trabalho. A região nada ganha, perde inclusivamente acesso a fundos comunitários porque o seu PIB está artificialmente empolado. Quem beneficia são apenas meia dúzia de indivíduos, normalmente com ligações ao poder político regional, que lucram com os esquemas que ali são montados, sendo administradores de dezenas, se não centenas, de empresas fantasma».
Por favor, não nos atirem poeira para os olhos e façam o que devem fazer, porque o tempo já nos deu conta de sujeira suficiente, para que não caiamos em qualquer balela que nos digam.    

segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Alegria do Amor

Para quem não tem tempo por agora para ler na íntegra a mais recente Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre a Família, pode começar por aqui... Um resumo excelente. Atenção leigos ao capítulo IV e atenção sacerdotes ao capítulo VIII. Eis no seu todo o texto que abre muitas portas se permitirmos que o bom senso e a boa vontade sejam luz para ver mais e melhor o Evangelho e, no caso, o ensinamento Papal.


“Amoris Laetitia”.
Caso você seja leigo e queira ler a exortação apostólica do Papa sobre a família, pule os três primeiros capítulos e comece pelo Capítulo IV. Caso seja sacerdote, teólogo moral ou fiel divorciado, leia o Capítulo VIII.
A exortação de 263 páginas Amoris Laetitia (“A Alegria do Amor”) foi lançada nesta sexta-feira, 08-04-2016, no Vaticano.
O artigo é de Thomas Reese, jesuíta, jornalista, publicado por National Catholic Reporter, 08-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O capítulo de abertura é uma reflexão sobre as Escrituras, mas francamente ele acabou sendo uma coleção de referências sobre os textos sagrados que, juntas, não ficaram bem.
Não que o capítulo seja ruim; há algumas passagens boas. Por exemplo, é legal ver uma exegese positiva da descrição de Eva no Gênesis como uma auxiliar de Adão. Mais adiante no capítulo IV, ele traz a Carta aos Efésios, onde se pede que “as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos”, dizendo que não se deve assumir “esta roupagem cultural, mas a mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope”.
O segundo capítulo analisa a “a situação atual das famílias, para manter os pés assentes na terra”. Esse capítulo, como o primeiro da encíclica papal sobre o meio ambiente, reflete a insistência do pontífice de que os fatos importam.
Penso que ele faz uma descrição realista do estado da vida em família, porém há algumas surpresas a observar.
Uma característica notória deste capítulo é o seu chamado a uma salutar autocrítica na Igreja.
“Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação”, escreve ele. “Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstracto, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são”.
“Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas”, continua ele. “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”.
O capítulo também convida à ação do Estado para a promoção de emprego, de moradia decente e de uma assistência à saúde, bem como um cuidado com os migrantes e pessoas com necessidades especiais.
O mais marcante é a condenação dos excessos das “culturas patriarcais”, de uma “forma de machismo” e da exigência de que devemos admirar “a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da mulher e dos seus direitos”.
O terceiro capítulo recorda “elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família”.
Ele começa enfatizando que “o nosso ensinamento sobre o matrimônio e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida”.
Infelizmente, o capítulo cai às vezes em uma doutrina fria e sem vida, com citações numerosas tiradas de três papas anteriores e do Vaticano II.
Permita-me enfatizar: não estou dizendo que não leia os primeiros três capítulos. Em vez disso, digo para começar pelo Capítulo IV e voltar aos três primeiros mais tarde.
O Capítulo IV é uma obra-prima. Ele deveria ser lido por todos aqueles que planeam se casar e por todos aqueles que já estejam casados, independentemente de quanto tempo já passou. Tomara que alguma editora venha a publicar este capítulo em separado para as aulas preparatórias do matrimônio e aconselhamento, bem como para cursos de ensino médio e superior.
Eu já participei numa discussão sobre este capítulo com um velho jesuíta, muito sábio, que opinou: “O que sabe ele sobre a vida de casado?” Embora o meu companheiro jesuíta não tinha lido ainda o capítulo em questão, ele refletiu as inúmeras pessoas que já se cansaram de ouvir homens celibatários falarem sobre o assunto da vida de casado.
Portanto, vocês casados, leiam o capítulo e nos digam o que acham dele. Enquanto isso, aqui eu descrevo o que está contido aí.
O capítulo intitula-se “O Amor no Matrimônio”. Começa com uma meditação  maravilhosa sobre a passagem lírica de São Paulo sobre o amor: 1 Cor 13, 2-3. Ele cita Martin Luther King e refere o filme “A festa de Babette”.
O texto toma o hino de Paulo como uma preparação para discutir o amor conjugal. “Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a ‘amizade maior’”, diz ele, citando São Tomás de Aquino.
O tom é pastoral e inspirador; não é irritante nem julgador. Pode-se somente concluir que, como sacerdote e bispo, ele passou inúmeras horas escutando e dialogando com os casais sobre a experiência de vida deles.
O Capítulo V trata dos filhos na família. Para o Papa Francisco, esse capítulo e o capítulo anterior são “os dois capítulos centrais, dedicados ao amor”.
No amor dos pais pelos filhos, Francisco vê “o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa”, isso porque os filhos “são amados antes de ter feito algo para o merecer”.
Ele afirma que “as famílias numerosas são uma alegria para a Igreja”, mas concorda com João Paulo II em que a paternidade responsável não é “procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável, tendo em consideração tanto as realidades sociais e demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos”.
No capítulo, ele fala da gravidez, e eu aqui deixo para as mães dizerem se ele acertou ou não, porém claro está que ele quer que a gravidez seja uma experiência alegre para elas.
O papa afirma a necessidade e o direito de um filho a ter o amor de uma mãe e um pai. Não somente como indivíduo, mas “juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também receber do outro”.
Segundo ele, “se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado amadurecimento do filho”.
Apesar da ênfase na necessidade dos dois pais, no capítulo seguinte o papa insiste que “o progenitor que vive com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade cristã, bem como nos organismos pastorais paroquiais”. Ele observa que “estas famílias são muitas vezes afligidas pela gravidade dos problemas econômicos, pela incerteza dum trabalho precário, pela dificuldade de manter os filhos, pela falta duma casa”.
O Papa Francisco insiste na existência de um papel especial para a mulher na família. Apesar de ser “legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objetivos pessoais”, ele afirma que “não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida”.
Pergunto-me o quanto estas opiniões foram influenciadas pelo fato de que a sua própria mãe o deixava com a sua avó durante o dia, quando as coisas ficaram mais difíceis na casa com a chegada de um outro irmão.
“Aprecio o feminismo”, escreve Francisco, “quando [este movimento] não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade”.
“A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e compaixão, ajuda a despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma autoestima que favorece a capacidade de intimidade e a empatia.
Por sua vez, a figura do pai ajuda a perceber os limites da realidade, caracterizando-se mais pela orientação, pela saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos.
Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança”.
Conclui que “o problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o fato de não estar presente”.
Por outro lado, no Capítulo VIII, ele admite “que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido”.
“O fato de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa um falimento, uma capitulação ou uma vergonha”, afirma ele na exortação. Tampouco estes intercâmbios sadios “não tiram dignidade alguma à figura paterna”.
“A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino”, continua o pontífice, “e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições reais do matrimônio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia”.
O Capítulo VI reflete sobre “alguns dos principais desafios pastorais”. Ele é endereçado aos bispos, sacerdotes e líderes pastorais. Ele evita uma especificidade detalhada porque “as diferentes comunidades é que deverão elaborar propostas mais práticas e eficazes, que tenham em conta tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e desafios locais”.
O papa fala da importância de proclamar o Evangelho da família, preparar os cônjuges para o matrimônio, formar líderes leigos, apoiar e acompanhar os casais na continuidade de suas vidas em união e quando passam por crises, incluindo o rompimento, o divórcio ou a morte.
Válidas de nota são suas palavras sobre os seminaristas, que “deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimônio, não se limitando à doutrina”.
“Além disso, a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo psicoafetivo”, afirma o papa que certa vez foi reitor de um seminário. “É preciso garantir um amadurecimento, durante a formação, para que os futuros ministros possuam o equilíbrio psíquico que a sua missão lhes exige”.
Ele também insta a presença de leigos e “particularmente a presença feminina, na formação sacerdotal”.
O Capítulo VII trata da educação dos filhos, o que os pais deveriam realizar “de modo consciente, entusiasta, razoável e apropriado”. Ele insta igualmente vigilância, mas não a obsessão. “O que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia”. Ressalta a formação ética e religiosa dos filhos.
Na maior parte, aquilo que ele diz é delicado e tradicional, mas o papa também levanta questões novas, como a necessidade um desligamento tecnológico.
Ele igualmente ecoa o chamado do Vaticano II por uma “educação sexual positiva e prudente”. Reconhece que “é difícil pensar na educação sexual num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade”. Argumenta que “só se poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua”. Ele não está feliz com a educação sexual que se centra no “sexo seguro”.
O Capítulo VIII é o que digo que deveria ser lido por todos os sacerdotes, teólogos e católicos divorciados, sendo também uma leitura válida para todo mundo. Provavelmente ele é a melhor discussão sobre a consciência e o pecado que vi publicada pelo Vaticano. Este capítulo merece um tratamento muito mais aprofundado do que posso dar aqui.
Ele começa citando os Padres Sinodais que disseram que, embora a ruptura do vínculo matrimonial “é contra a vontade de Deus”, mesmo assim a Igreja “dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também atua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham”.
Em tais casos, “poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus”.
Ele cita a “lei da gradualidade”, conforme articulada por São João Paulo II, através da qual todo ser humano “[avança] gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social”.
Ao citar o Sínodo dos Bispos, ele diz haver uma necessidade de “evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações” e que “é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição”.
Por meio do diálogo e do discernimento, a Igreja ajuda aqueles em situações irregulares a compreender a “a pedagogia divina da graça nas suas vidas”. Ele faz observar que as situações desses casais podem ser muito diferentes e não deveriam ser catalogadas em classificações rígidas.
“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que ‘o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar’.
Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que ‘contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido’” (citações de João Paulo II).
Em seguida estão os divórcios recentes, “ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares”.
Todos estes exigem um discernimento cuidadoso. Não há “receitas simples”, diz ele citando o Papa Bento XVI. Consequentemente, “é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos”.
“É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que [conforme disse o Sínodo] ‘o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos’, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos”.
De novo, citando o Sínodo, ele concorda que “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo”.
Os divorciados e recasados deveriam se perguntar, mais uma vez citando os Padres Sinodais:
“[…] como ele se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se devem preparar para o matrimônio”.
Um tal discernimento, segundo os Padres Sinodais, exige “humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma”.
Isso é bem diferente da “ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente ‘exceções’, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores”, escreve Francisco. Ele então apresenta uma seção sobre as circunstâncias que podem atenuar a responsabilidade moral, a qual deveria ser considerada em um tal discernimento.
“Já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante”, escreve ele.
Ao citar o Catecismo da Igreja Católica, ele nota: “A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”.
Alhures, observa que o catecismo refere circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral e menciona a “imaturidade afetiva, a força de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou sociais” que diminuem ou extenuam a culpabilidade moral.
Francisco concorda com o Sínodo: “mesmo defendendo uma norma geral a ser seguida, é necessário reconhecer que a responsabilidade com respeito a determinadas ações ou decisões não é a mesma em todos os casos”.
O Papa Francisco, porém, vai além do simples uso da consciência para reconhecer que “uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho”.
Ele diz também que pode reconhecer “com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo”.
Francisco está dizendo que não é suficiente apenas considerar se as ações da pessoa correspondem, ou não, a uma norma ou lei geral. “É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar”, diz ele, “mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares”.
Assim, para o Papa Francisco “é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”.
Em nota de rodapé (351), ele afirma que “em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos”. Menciona tanto a Confissão como a Eucaristia, que “não [são] um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.
O pontífice entende que alguns querem uma abordagem mais rigorosa, sem lugar para confusão. “Mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, ‘não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada’”.
“Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes”.
Reconhece que “que a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus”.
O capítulo final é sobre a espiritualidade conjugal e familiar.
Ele insiste que o Senhor habita na família real e concreta, “com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários”. Viver uma vida de amor em tal família é um meio de aprofundamento da união com Deus. “A espiritualidade encarna-se na comunhão familiar”.
“Aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito”, segundo ele, “mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística”.
Eis um documento papal que vale a pena tirar um tempo ler e ser objeto de reflexão. Há partes maçantes; há partes que inspiram e deleitam; há partes que trarão esperança; e há partes que irão enfurecer.
Se esta exortação apostólica trouxer o debate sobre a família feito no salão sinodal às paróquias e famílias, então ele terá tido sucesso.
In Instituto Humanitas Unisinos, Sábado, 09 de abril de 2016