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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Memória - Evocando João Bénard da Costa

Arrisquemos, para definir João Bénard da Costa, um adjectivo que carece evidentemente de precisão: divino. Divino no sentido de divo, que João Bénard sem o ser plenamente foi, com o seu porte de velho senhor, o mesmo riso de demiurgo que quase juramos haver já visto fixado pelos romanos em alguma estatuária, o brilho hiperbólico, a inteligência analogamente intensa, o timbre cavo, a curiosidade, a coquetterie, o enigma e, por fim, surpreendentemente ou não, a inocência.
E divino também no sentido literal, na medida em que essa era a natureza do seu olhar. Quando João Bénard explicava aos incautos que o seu tempo não era este, não era o deles, era o da maria cachucha, que reivindicava ele? Uma imperdoável apostasia: a de um contemporâneo que se coloca na pré-história. O seu tempo era aquele em que o homem que pensa não é apenas o sábio, mas também vidente e profeta. Foi assim que Epiménedes de Creta teve o privilégio de ver a verdade (aletheia) com os próprios olhos. E Moisés entreviu a Deus pelas costas. Foi assim que na tradição persa o termo verdade (Rta) se alargou a um extensivo de possibilidades semânticas: a exactidão, mas também a mecânica que assegura o retorno da aurora, a oração litúrgica, a ordem e o direito. A verdadeira diagnose é esta que não teme, mas religa o que apressadamente declaramos como antinomias: Deus e os homens, o visível e o invisível, o eterno e o mortal, o permanente e o mutável, o forte e o fraco, o puro e o híbrido, o seguro e o incerto.
A escrita de Bénard, costurada em digressões permanentes, parêntesis e alvéolos, mostra, além disso, como a palavra é inseparável da memória. A memória não é apenas o suporte da palavra: é, sobretudo, a potência (poética, maiêutica…) que confere ao verbo o seu estatuto de significação máxima.
José Tolentino Mendonça, In Pastoral da Cultura

2 comentários:

Susana Ramos disse...

Este senhor padre Tolentino é pura e simplesmente Brilhante!
Espiritualmente muito evoluído.
É bom ter o privilégio de contactar com estas pessoas: crescemos por dentro.
Susana Ramos

José Ângelo Gonçalves de Paulos disse...

O João Bénard da Costa foi um dos brilhantes cristãos militantes que abandonou a Igreja Católica, sem deixar de ser crente, por causa da encíclica Humano Vitae de Paulo VI.
A Igreja Portuguesa muito lhe deve a ele Alçadsa Baptista.
Tolentino Mendonça deveria, na sua linda prosa, destacar a riqueza desta coragem. A Verdade de Jesus Cristo leva-nos a tomar posições, em certos momentos, corajosas.