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Convite a quem nos visita

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Os meus medos

Parece serem poucos. Vamos ver. Porém, estou ciente que são suficientes para me atormentarem o espírito e o cérebro.

Tenho medo dos silêncios cobardes e oportunos, que cimentam relações, muitas vezes de vidas inteiras. Umas relações de infelicidade consentida para sempre, mas salvas pelo «milagre», fruto do silêncio e pela oportuna cobardia.

Tenho medo dos heróis do «primeiro lugar», dos primeiros a chegarem à linha da frente, tantas vezes movidos pelas artimanhas da ganância e pela sede desmedida de serem sempre mais do que um simples mortal. Mas também tenho medo dos cobardes da retaguarda.

Tenho medo da dor do estilete cravado no peito sem tréguas e sem que exista no mundo remédio nenhum que acalme essa dor.

Tenho medo dos que nunca encontraram motivo nenhum para chorar. Nem muito menos tolerar conviver com as lágrimas alheias.

Tenho medo dos que perderam o entusiasmo pela luta de uma vida melhor para todos. Onde o pão nosso de cada dia deva ser a paz alcançada, mesmo que seja pelo preço mais elevado deste mundo, porque quem não tem compaixão pelas atrocidades que a guerra provoca, mostra que já morreu.

Tenho medo de quem não aproveita cada dia e prefere sofrer dia a dia.

Tenho medo daqueles que todos os dias ressuscitam o princípio antigo do desprezo pela morte dos fracos.

Tenho medo dos que não distinguem a diferença entre a dignidade e a chafurdice humana.

Tenho medo daqueles que logo que morrem os seus próximos correm com a ponta dos dedos em riste apressados a apagar-lhes o número do telemóvel.

Tenho medo daqueles que acham que podem vencer até os mortos, quando está determinado, os únicos invencíveis, são precisamente os que já morreram.

Tenho medo daqueles que não reparam nas nuvens de tristeza que toldam a cor dos olhos, quando estes foram feitos para brilharem habitualmente.

Tenho medo de quem vai morrer sem perceber que deve lutar a todo o custo para sobreviver e que nunca permita ser tratado como um animal.

Tenho medo do vírus da tristeza sem fim à vista.

Apostila: Não são assim tão poucos os meus medos… Talvez nenhum destes medos eu consiga vencer, porém, espero que quase todos ou mesmo todos se afastem de mim e os que me rondarem, que eu encontre forças para devotá-los à maior distância do meu terreiro.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Na indiferença e no descrédito


No livro indispensável «A Peste» de Albert Camus, fica claro que a religião do tempo da peste não pode ser a religião de todos os dias.

Esta ideia despertou-me para o fenómeno da indiferença e do descrédito, tão próprios dos nossos dias, que a religiosidade desde tempo não pode ser a religiosidade de todos os dias, isto é, uma religiosidade que eventualmente vingou noutros tempos e em contextos da existência humana totalmente distintos dos da atualidade.

Não tenho uma receita para prescrever. Não sou médico de coisa nenhuma. Mas, estou seguro que a conclusão de Camus se aplica a todas as pestes. Não podem surtir os mesmos efeitos no nosso tempo, as expressões religiosas de outros tempos.

Para muita boa gente custa muito perceber isto, principalmente, os refratários que se organizam em claques clericalistas para combaterem o Papa Francisco e as diversas tentativas de adaptação da linguagem evangélica face aos tempos de hoje tão díspares dos tempos idos. Só quem é zarolho por completo, é que não percebe que a vida muda e se mudam os seus contornos como não deve mudar tudo o que a ela está relacionado?

Aos tempos onde a existência se tornou tão diferente do passado, é uma exigência que as expressões religiosas sejam necessariamente diferentes.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

A crueza de uma foto com um cenário do acaso

 


Foto de Pedro Paixão e Yasmin. Ambos retirados prematuramente deste mundo de forma trágica. Ambos morreram pela impetuosidade da velocidade. Ambos aficionados por ralis e veículos de corridas. Ambos estarão juntos na corrida do lugar sem tempo, a eternidade, onde o frenesi do amor será o mais intenso e mais feliz. Paz.

O mistério da existência tem contornos que nos escapam. Esta foto tem um detalhe curioso, estranho e, parecendo, mórbido se quisermos. Senti emoção e fiquei chocado com esta foto e com a morte de ambos. Por isso, rezo por ambos, pelos seus familiares, amigos e sinto que os ralis da eternidade ficaram enriquecidos. 

Só Deus mesmo existindo para compensar o que não podemos fazer neste mundo por eles.

A vida não acaba, apenas se transforma. E qualquer morte tem de ser absolutamente a suprema manhã. Paz para todos.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Um dia de paz e de sabedoria na Quinta da Alegria

 
As vontades humanas, o seu engenho e arte, encrustaram na zona mais alta das serras de São Roque, no Funchal, a Quinta de Nossa Senhora da Alegria. Três andamentos de sabedoria e paz.

Reza a história assim sobre aquele lugar onde se vislumbra natureza exuberante, três edificações a começar pela capela de Nossa Senhora da Alegria. Francisco Vieira do Canto e Abreu (Funchal, 30 out. 1583; idem, 25 dez. 1636). Capitão de uma das companhias de arcabuzeiros do Funchal, era filho de Manuel Vieira do Canto e de D. Beatriz de Abreu, vindo a fundar a capela de Nossa Senhora da Alegria, em São Roque, embora viesse a ser sepultado no convento de São Francisco do Funchal. A capela passou depois aos Torre Bela, tendo sido restaurada em 1886 e benzida a 8 de Dezembro de 1887, passando a antiga proprietária Ann Constance Borger Fairlie, falecida nos Açores em 1986, algumas temporadas na quinta anexa. A quinta foi depois vendida ao Eng. Freitas Branco, que construiu a parte nova e nela habitou e, em 2020, passou a ser propriedade do escultor e pintor Francisco Simões.


Este dia 27 de julho reservou-me a felicidade de ser recebido em grande pelo seu atual proprietário, o meu bom e estimado amigo escultor Francisco Simões.

No meio da natureza exuberante, saboreamos a desmedida alegria do anfitrião que se desmancha em simpatia e sorriso contagiante. O seu entusiasmo é cativante e começa a guiar-nos como um enviado dos céus, alertando para os detalhes religiosos, o valor artístico de cada peça, todo espaço envolvente repleto de árvores, flores, árvores fruto e todo o género de plantas. Um manancial que preenche cerca de doze mil metros, que oferece ao interior de quem busca a beleza um encanto retemperador.


A visita começa na exígua e vetusta capela dedicada a Nossa Senhora da Alegria, onde se nos desvela um retábulo muito interessante com a imagem de Nossa Senhora e o Menino ao colo. A mão direita de Maria oferece ao menino uma maçã dentada, símbolo do pecado que entrou no mundo por uma outra mulher, Eva. Maria a nova Eva oferece ao Menino Jesus o símbolo do pecado e da perdição da humanidade, pois Ele é o redentor e o salvador da humanidade. Se por uma mulher, Eva, entrou o pecado no mundo, ao dar a dentada no fruto proibido, a maçã, por outra mulher, Maria de Nazaré, entra a redenção e salvação de toda a humanidade.

A visita continua e vamos à casa mãe, a casa original da quinta da Alegria. Maravilhosamente restaurada e apetrechada com encantador mobiliário antigo e como não poderia deixar de ser, uma autêntica «galeria de arte», com quadros e estátuas do proprietário da Quinta, o escultor Francisco Simões.

Miguel Torga


O terceiro momento ficou reservado para a habitação e atelier do escultor, a parte nova da Quinta, onde tem sido moradia dos últimos proprietários. Neste espaço podemos nos deslumbrar com a paisagem verdejante que se impõe como presença incontornável. Os diversos compartimentos estão repletos de estátuas, cada uma mais bela que a outra, imagens, quadros com os desenhos das estátuas e obras de arte espalhadas por Portugal Continental e pelo mundo fora. Saltam aos olhos, os cerca de cinco mil livros sobre arte, cuja maior parte tem participações do escultor Francisco Simões. Tudo são preciosidades que nos falam e nos encantam o olhar da alma em sentida devoção e comoção. 


Não podia ser melhor o propósito do Evangelho deste que dia, tirado de São Mateus, que nos relata que um homem encontrou um tesouro escondido num terreno, ficou tão contente que vendeu tudo o que tinha e comprou esse terreno. Outra parábola no mesmo relato diz que um negociante que procura pérolas preciosas, ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola. É bem o que me apetecia fazer se estivesse um gesto deste ao meu alcance.

As serras de São Roque escondem um tesouro e uma pérola de grande valor. Para nosso desgosto e mais ainda do dono deste tesouro, pessoa de renome nacional e internacional, que embora não sendo natural da Madeira, ama a nossa terra, deixou tudo e tanto para trás, meteu tudo isto em contentores e rumou para a ilha da Madeira. Nada melhor podia nos ter acontecido. Uma graça que não encontrou aliados, melhor, encontrou desinteresse, indiferença e pior que tudo alguma zombaria porque devem considerar quem assim procede como um louco, um lunático que se guia pela inutilidade da arte.


Francisco Simões está desgostoso e mais uma vez desencantado com o desprezo e indiferença que encontrou na ilha. Por isso, está novamente de armas e bagagem quase prontas para rumar a outras paragens, onde possa encontrar outros «loucos», que se alimentem daquilo que entre nós se considera «inútil». Sim, porque na nossa terra «útil», é o pão e o circo permanente, mesmo que passado o efeito nada fique senão a miséria que o esgoto engole. Os rios de dinheiros públicos que se gastam em ramboiadas, podiam muito bem servir para ser investido em arte, cultura, sabedoria e em tudo o que são valores que a traça não rói e que nenhuma contrariedade do tempo e do modo possa diluir.


É com muita pena que vejo este tesouro não ser valorizado pelas autoridades regionais. As nossas escolas aqui podiam ter um campo magnífico para ensinarem a contemplar a arte, a cultura, a natureza… Melhor lugar não se encontraria para sair dos caixotes das salas de aulas tantas vezes secantes como testemunham os alunos. É muito triste que ninguém tenha aproveitado a disponibilidade daquele espaço e a sabedoria do seu proprietário. O seu desencanto trouxe-me a pensar cheio de tristeza na viagem de regresso.    

E concluo assim, a traça corrói a madeira. A pobreza de espírito corrói a ilha da Madeira.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Sem futilidades nos descobrimos e entendemos


O domingo 24 de julho trouxe para a celebração da missa um texto do Evangelho de São Lucas sobre a oração. Jesus respondendo ao repto de um dos seus discípulos ensinou a oração do Pai Nosso. Mas, não foi só isso que fez simplesmente. Também aproveitou para fazer uma catequese sobre a ideia de Deus e de como Deus se posiciona face à oração de cada um.

Andei por aí a observar algumas homilias proferidas ontem e na maioria reparei que a oração se centrava na tónica da insistência. Para quem insiste na reza, quanto mais, melhor, está safo, porque há um deus a encher um depósito do muito palavreado que lá chega e quando atinge a medida, concede o que lhe pedem. Não embarco nesta ideia.

Não considero Deus um vendedor tipo de um basar chinês. Um comerciante ou negociante de milagres, curas e soluções para os problemas que nos compete encontrar.

Por isso, salientei a ideia de que a mensagem de Jesus era um valente puxão de orelhas a todos nós, que facilmente, fazemos de Deus um negociador. Uma entidade despenseira de milagres e de soluções para os problemas da existência, que nos compete resolver com simplicidade, humildade, justiça e verdade.

A mensagem é clara e pretende passar a ideia de que Deus é a Verdade Plena, a Suma Bondade, a Beleza incomparável e a Misericórdia Infinita. Por isso, não precisa de que a oração seja um desenrolar de coisas em cima de coisas, palavras e mais palavras. Bastam bons propósitos e sérios sentimentos, porque disse Jesus, «quem pede recebe; quem procura encontra e a quem bate à porta, abrir-se-á».

Depois da oração do Pai Nosso vieram duas parábolas bem elucidativas, que pretendem dar uma ideia acerca de Deus como Pai, que não precisa de insistência nenhuma. A primeira, conta que um amigo recebe em casa outro amigo que vinha de viagem, estava cansado e com fome. O anfitrião não tinha nenhuma comida em cada para lhe dar. Pensou bater à porta do vizinho, que também era seu amigo, para lhe desenrascar um pão. Mas, visto serem altas horas da noite, não se levantou logo para satisfazer o pedido, barafustou e só depois de muita insistência veio furibundo à porta dar-lhe o pão, despachando o amigo com indisposição desmedida. O próprio Jesus interpreta o texto de forma magistral dizendo que ele não se levantou por ser amigo, mas por causa da insistência. Só faltou Jesus dizer, com Deus Pai que vos falo e apresento não é nada assim.

Mais adiante, temos então o puxão de orelhas propriamente dito. A segunda parábola são duas perguntas: «Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe, em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente? E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião»? E logo de seguida adianta: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!» - Melhor é impossível!

Tudo tão claro e tão óbvio, que faz pena ouvir e lerem-se autênticas barbaridades de bispos e padres que sem escrúpulos nenhuns distorcem o sentido das palavras.

É pena que não se aproveite para esclarecer e fazer crescer as assembleias litúrgicas, mas se contribua ainda mais para amedrontar as pessoas diante de uma imagem de um deus irascível, desmedidamente exigente e depositante de futilidades que se considera oração. Pois, só uma riqueza em nós bastará: «o Espírito Santo», que pode estar em forma de dons em cada pessoa: a sabedoria, o entendimento, o conselho, a fortaleza, a ciência, a espiritualidade e o amor de Deus. Mais palavras para quê…

quarta-feira, 20 de julho de 2022

A felicidade que a pobreza nos dá

Decorreram no dia19 de julho de 2022, durante a tarde inteira as comemorações do décimo aniversário do Banco Alimentar Contra a Fome na Madeira (BA).

De acordo com as primeiras atas, na Madeira o BA não celebra 10 anos, mas 11 anos - já explico. Poderão considerar que se pode negligenciar as particularidades seguintes, mas a História nunca o deve fazer, em a bono da verdade de qualquer memória, pois, pequenos e grandes fatos têm utilidade. E como diz Victor Hugo, «é com a fisionomia dos anos que se compõe o caráter dos séculos».

As primeiras atas das reuniões oficiais com os cidadãos fundadores do BA na Madeira, poderão confirmar que o BA Madeira não começou a existir no dia da sua inauguração e implantação no Armazém gentilmente cedido pelo sr. Fernando Caires no sopé sul do Pico dos Barcelos. Há muita história e pessoas envolvidas muito antes da sua inauguração. Assim, a bem da verdade, preciso fazer este registo, para que sejamos fiéis à memória histórica. Mas, parece, que logo ao fim de dez anos de existência, interessa que se apaguem alguns dados cruciais da origem do BA na Madeira. Não alinho nisso.

O mérito da «máquina poderosa» em que se tornou o BA madeirense, é óbvio que não se deve ao grupo inicial de cidadãos que a muito custo e contra várias vicissitudes conseguiram que o BA viesse para a Madeira. Quase todos os cidadãos desse início saíram ou foram descartados logo no nos primórdios, porque alguns descobriram que ali estava um filão interessante para outros fins alheios à luta contra a pobreza. É pena.

Vamos a peripécias do destino. Foram várias as tentativas para trazer para a Madeira o BA, mas o Governo Regional, a Cáritas com a força do bispo diocesano e demais entidades regionais, moveram pressões duras contra as várias tentativas. Entendiam que na Madeira não havia pobres nem muito menos fome, diziam, para quê um BA contra a fome, se não temos pobreza nem fome?

A 24 de Setembro de 2011(Ata número 1), nascia o BA na Madeira. Após algumas reuniões informais, pela primeira vez encontraram-se todos os cidadãos convocados e interessados em trazer para a Madeira o BA, sem qualquer intenção de vir a ser um braço armado de nenhuma entidade pública. Está bem claro na primeira ata, um dos cidadãos presentes nesta primeira reunião oficial, «relatou o seu encontro com a Senhora Coordenadora Nacional do Banco Alimentar contra a Fome, Isabel Jonet, e chamou a atenção para os objectivos daquela organização equiparada a IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social); a ação indirecta que desenvolve e a sua independência face às estruturas político/governamentais, ideologias, religiosas e outras».

Tudo isto foi mandado às urtigas. E quem não cumpre com o que defendeu não aceita que se alerte para a subserviência e dependência, porque facilmente enche a boca com a expressão «são os nossos parceiros». É o que diz tudo o que mexe na Madeira, que nunca existiria se não fossem os orçamentos públicos. 

Os nossos impostos, que devem ser cobrados para pagar os nossos governantes (e muito bem pagos por sinal), devem ser para políticas de justiça social, de igualdade de oportunidades e incentivos à criação de emprego. Nada para a caridade. Os governantes não são pagos para fazerem assistencialismo. A política de mão estendida (vulgo caridade) deve ser sempre provisória e a prazo, nunca uma receita permanente como estamos a ter nos últimos anos. Esta forma de responder à pobreza é gerador de mais dependências e de mais pobreza. Ainda sonho com instituições, pessoas e grupos que não falem de pobreza, mas falem aos pobres para que sejam eles os protagonistas da sua libertação.

Não aceito que andemos nesta onda de mãos estendida, uns a pedirem outros a terem que dar, porque a governação ao invés de suscitar o progresso, é motivador de subdesenvolvimento.

Neste momento estamos bem, dizem, o BA e as dezenas de instituições de distribuição de comida, pois estão a funcionar de forma maravilhosa. Todos estão contentes (menos eu que não concordo com nada disto). As entidades públicas ficam excitadas, o pessoal da máquina do assistencialismo está ao rubro, porque recebe mais dinheiro público, mesmo que não se saiba o que é um pobre e quantos pobres temos na Madeira. Parece basta que este «braço armado do assistencialismo» encha as barrigas dos incautos, mostre como são amigos dos pobrezinhos alguns ricos, os governantes e as sobras recolhidas são uma das melhores ações ambientais que se faz por cá. Por fim, os políticos ganham em votos e os outros sabe-se lá Deus em que mais. O que é certo, é que quanto mais fortes e bem organizadas as instituições assistencialistas forem, não saímos da cepa torna, a pobreza mantém-se ou aumenta. Porque o real perfeito funcionamento do assistencialismo, é a derrota maior das políticas e dos governantes que se esqueceram de levar a efeito medidas contra a pobreza. Mais do que louvores e regozijos devia haver vergonha.

Foi pena que neste encontro não se tenha ouvido uma palavra que fosse sobre justiça social, incentivos à criação de emprego e políticas bem vincadas que sejam geradoras de igualdade de oportunidades para todos. Nada, zero de apoios às famílias fora do âmbito da esmola. Nada de sério quanto a uma política de desenvolvimento que faça sair a Madeira do índice de uma das regiões mais pobres do país.  

Como se compreende que estejamos com escassez de trabalhadores em várias áreas, mas depois dizem que vão reforçar toda a rede de apoios assistencialista? Tem algum jeito este paleio?

Enfim, é pena que continuemos assim, numa loucura presente sem futuro, que conduz a Madeira a estar permanentemente subjugada à pobreza, deprimentemente envelhecida e sem massa cinzenta qualificada, porque todos os jovens que saem da Madeira para estudarem não voltam (e fazem muito bem!).

É melhor acordar para a realidade e marcar a data da morte de todos os organismos assistencialistas que vieram a lume como cogumelos na nossa terra nos últimos anos. E terminarmos com esta ideia sub reptícia que a alegria de alguns espelhada nos retratos quando se trata do assistencialismo, é a felicidade que a pobreza nos dá!

Aos governantes pedimos, concentrem-se nas políticas inclusivas, na justiça social e na igualdade, para que deixemos de dar o pão de «mão beijada», sem nunca esquecer, que não há nada mais indigno, que é comer das esmolas. Por isso, providenciem-se muitas canas e que elas ponham cada um a pescar o peixe com o suor do seu trabalho.


terça-feira, 19 de julho de 2022

O Evangelho feito pelas mulheres

A missa do domingo passado (17 de julho de 2022) reservou uma passagem do Evangelho de São Lucas, deveras desconcertante e que devia ser valorizado com mais ênfase pela Igreja em geral e pelas nossas sociedades.

É um pequeno texto que tem como figuras centrais duas mulheres, Marta e Maria perante Jesus, que tinha sido convidado pela dona da casa, Marta. Ambas recebem bem. Mas, Marta destaca-se e atarefava-se numa azáfama estonteante para receber dignamente o Mestre. Maria, tomou a posição do discípulo, sentada aos pés de Jesus, escutava com atenção as suas palavras. Obviamente, que a maioria releva a atitude de Maria, porque escolheu fazer contemplação, aparentemente, um gesto mais submisso, que é do agrado do machismo. Menos valorizada é a atitude de Marta, que andava agitada e no ativismo, elementos mais do que suficientes para ensaiar um discurso negativo e de condenação da vida atual. Porém, não esqueço que Mestre Eckardt, surpreendentemente, chamou a atenção para o fato de considerar a verdadeira mística, afinal, era Marta.

O grande ensinamento que se tira deste episódio é de que Jesus aproveita para nos mostrar o que é o discipulado ou o apostolado, a partir de duas figuras femininas e não masculinas como habitualmente se faz crer. Até parece que a evangelização para ser autêntica só pode ser feita pela voz masculina. 

Por isso, nem uma nem outra atitude exclui a outra. Ambas se complementam. Mas, poderão afirmar que Jesus destaca a atitude de Maria: «Maria escolheu a melhor parte». Não acredito que Jesus o tenha dito exatamente assim. Dois mil anos de peripécias produzidas pelas vicissitudes das traduções, pressionadas pelo patriarcalismo e pelo machismo reinante devem ter feito muito mal à riqueza da mensagem do texto e desvirtuado o pensamento de Jesus.

Assim, iluminados pela riqueza deste texto, na atitude de Maria, somos tomados a considerar que para a vida toda e para todas as vidas, em qualquer circunstância, só nos fará bem escutar e contemplar a mensagem, que nos ajude a nos descobrirmos, a vermos bem de onde viemos, para que estamos e para onde vamos. Como disse Sophia de Mello Breyner: «Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio». Nenhum Homem é uma besta de carga.

Porém, na irrequietude de Marta, somos também convocados para a ação, a missão da vida concreta e aí sentimos como nos devemos implicar nas obras concretas que edificam o mundo e concedem dignidade aos nossos semelhantes. É preciso transformar o mundo e transformar a pessoa com a mais nobre qualidade que foi dada à humanidade, a inteligência para conjugar o verbo fazer.  

É pena que no geral a Igreja Católica ao celebrar a missa, quando aparece este texto se reduza à interpretação enviesada, sem relevar o quanto está aqui presente uma mensagem sobre o apostolado. E mais ainda considerar sem medo que Jesus no seu grupo tinha mulheres e homens, ambos unidos foram o sinal da fraternidade ou da irmandade que Jesus fundou. É pena que não sejamos capazes de fazer valer nos «tempos sinodais» este quadro fraterno, profundamente evangélico e tão fiel ao sonho de Jesus.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O sentido da existência está na confiança


Em tudo na vida sempre tem que estar pressente a confiança. Ainda mais no que diz respeito à realidade última e ao nosso fim último.

Sem confiança, tudo se torna irracional e absurdo. Por isso, os fins últimos para muita gente, tantas vezes são inaceitáveis e desesperantes, porque não suportam as contingências da vida, particularmente as do fim último, a morte. Não as suportando há desespero, revolta, que depois não deixa viver nem permite saborear a existência presente e menos ainda a futura.

A par da confiança pode estar o nada ou Deus. Ambos podem ser pensados e a razão humana para ambos pode encontrar causas que os justifiquem. O nada, é o vazio, o fim definitivo e irremediável. Deus é o mistério que abraça toda a existência, fonte inicial e última de toda a criação.

É verdade que nenhum se comprova e demonstra. Nenhum pode ser verdade absoluta que se impõe pela força ou pelo seguidismo cego. Ambos estão nos corações da humanidade. Um e outro orientam o caminhar humano da vida histórica de multidões incontáveis de pessoas.

Nada e Deus não são comprováveis, mas nenhum pode de forma alguma dispensar a confiança e a razão. E ninguém neste mundo sobrevive à beleza do amor, a fina flor do tempo e do modo de toda a criatura que veio à luz deste mundo.

O amor não se pode demonstrar. Deus não se pode demonstrar. O nada não se pode demonstrar. Porque se alguma vez forem demonstrados qualquer um deles, deixava imediatamente de ser o que é.

Uma certeza segura é que a nossa existência não é possível ser encarada sem o amor - o amor implica sempre a confiança. É óbvio, que o amor está presente no coração crente do nada e no coração crente de Deus. Por isso, eu acreditando em Deus ou no nada, vejo-me implicado sempre na luz da confiança. E só assim se constrói o presente e o futuro, subindo os montes do bem e da verdade, mas também descendo os vales do sofrimento com redobrada esperança (e confiança).

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Festival da lapa e da poesia

Finalmente alguma coisa de jeito nesta nossa pasmaceira de Madeira para elevar o espírito e as mentes sedentas de cultura.

Alertado por amigos para o belíssimo cartaz que anuncia mais um mor arraial de sabedoria popular e encanto inteletual, lá fui espreitar o dito cartaz e eis «Festival gastronomia e poesia». Toma para aprenderes.

Que se desenganem as almas que arribarem ao Paul do Mar neste fim de semana (15, 16 e 17 de Julho 2022), pensando que só degustarão só e apenas lapas, frango assado, espetadas e bolo do caco, tudo regado com vinho e cerveja coral. Nada disso! Par desta nossa excelsa e divinal criatividade gastronómica, típica de todo o circo madeirense, levarão pelo sarrilhe abaixo com poemas, sonetos e outros versos de alto gabarito.

Ao deparar-me com o cartaz, espreitei as figuras que o compõem, os chamados cabeças de cartaz da festa, uns conheço outros não, mas fiquei logo descansado porque são todos, pessoas que cantam músicas com montes de mensagem poética como nunca se viu no mundo musical.

Logo depois pensei, tenho os cabeças de cartaz do arraial popular em honra da lapa, faltam as figuras da poesia...

Vai daí, porque ando farto de tantas deformações sintáticas, dos rípios e das sílabas em excesso ou da sua falta, neste afã de ver cabeças sonantes de poesia mergulhadas no fundo do cesto das lapas e no cardápio indispensavelmente pimba, bebi mais uma frustração, não encontro nenhum verso, nem muito menos um soneto, livre ou rimado que me diga eis a poesia. Nomes à poesia ligados, nada, mesmo nada… A que se deverá o pomposo título: «Festival gastronomia e poesia»?

Vamos continuar à espera de sair desta obscuridade na poesia, que tanto carateriza o público em geral, até ao dia em que no Paul do Mar, a degustação lapeira faça valer a poesia como ingrediente humano para iluminar o ambiente social deste cantinho ilhéu onde nos criamos. Tomara que seja agora esta vez da luz que sobre o horizonte cintilará a poesia.

Não digo nem espero que as palavras façam desabrochar as flores com os seus aromas encosta íngreme acima, mas que a comovida retórica das letras musicais dos cantores convidados, nos façam enternecer o espírito, porque o corpo está mais que sacudido com a «criativa» gastronomia madeirense e a dança que o vazio pimba suscita.

Venham versos de Milton e de Goethe, Cavafis e Seféris, Herberto Hélder, Fernando Pessoa, Sophia Andersen, Miguel Torga ou então mais alguns dos nossos: Maria Aurora, Agostinho Batista, Tolentino Mendonça… E todos os que couberem no comensal dos alapados deste mundo e do outro que vegetam à conta do engodo e do engano do povo. Siga a festa.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

A Deus louvamos pelo dia da Região


Dia da Região Autónoma da Madeira e das Comunidades Madeirenses. Tem um nome cumprido e pomposo, como o ego de tantos os que fazem deste dia uma máscara polida e envernizada de fresco sem sumo e muito menos com a realidade autêntica de onde habitamos.

Ainda hoje haverá «Te Deum» na Sé do Funchal como «enfeite» do extenso programa do dia.

Acho bem que exista um «Te Deum» na Sé e devia até haver em todas as igrejas da Madeira, um louvor bem vincado pela libertação de um povo explorado, massacrado pela colonia e pelas íngremes desigualdades sociais que sempre marcaram (e marcam) população madeirense. A Autonomia ainda não fez valer o sol da justiça e da igualdade de oportunidades.

Já sei, não precisam de me lembrar, a igreja não deve «meter-se» em política. Porém, afirmo sem dúvida nenhuma, a igreja não pode ser um singelo brinquedo para o poder político se pavonear e receber elogios apenas. Na área do poder político muitos pensam que o papel da igreja se reduz a fazer salamaleques diante das suas passeatas. Não querem ser incomodados.

É triste constatar que na realidade têm sido correspondidos com o silêncio cúmplice da nossa igreja em muitos momentos, face a tantas situações que gritavam por um apelo, uma denúncia profética, uma palavra… Nada de nada foi o que veio sempre. Ficaram apenas as festas, os rituais e o verbo das generalidades.

Tudo isto é o pecado do esquecimento da igreja da sua dimensão libertadora do Evangelho e ficando-se no comodismo da «salvação das almas». Os corpos que se contentem com as migalhas que lhes chega.

É claro que à Igreja não compete governar. Ponto final. Mas como instituição com um mandato tão claro para evangelizar os pobres e defendê-los, não pode deixar de estar atenta à governação, e mais ainda do que isso, totalmente comprometida com a libertação dos excluídos, os sem poder reivindicativo, pela falta de bens materiais, educação, cultura e oportunidades para serem cidadãos de pleno direitos e deveres.

Estes momentos de «Te Deum» deviam ser ocasiões, não apenas para festa, pomba laudatória, rituais anacrónicos e generalidades ocas, mas um alerta e um sinal de compromisso na denúncia de uma certa maneira de exercício do poder quando resvala para os abusos, que em vez de resultar na melhoria das condições de vida do povo, ainda mais acentua as desigualdades e as injustiças.

Portanto, é dever da igreja «meter-se» na política, não de todo de qualquer jeito, mas ao modo de Jesus Cristo. Os Evangelhos estão cheios de exemplos.

É óbvio, que este dia deve ser bem vivido e celebrado. Mas, não apenas, como um intervalo nem muito menos como mais um feriado para gozar o descanso, sem pensar um pouco sobre o seu real significado, o que ele implicou no passado e para onde nos está a levar.

Este dia também deve ser associado à revolução do «25 de abril», que nos libertou das amarras de uma ditadura de 48 anos e nos abriu a porta para o futuro em liberdade. Urge, como cristãos, que não esqueçamos o quanto temos que nos alegrar com a liberdade e com a Autonomia da Madeira.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

O poder de perdoar


O poder maior e o mais importante do mundo.
Ninguém o tem de modo particular. Pertence a todos os corações. Pertence a todas as pessoas.

É o poder mais democrático que existe. Muitos houve e ainda há que o querem privatizar. Os padres estão no topo da lista, de tal forma que até se arvoram em detentores de mandato expresso de Deus e com um ministério senhorial concedido por outros pecadores para perdoarem pecados. 

Tal mania deu no que hoje vamos sabendo, a vergonha dos abusos de vária ordem, que deixaram marcas insanáveis para toda a humanidade. E um descrédito total na mensagem da salvação. Não será fácil recompor-se na posição certa para fazer passar o discurso adequado para fazer valer o caminho da evangelização. 

Deus é que é o primeiro a exercer este poder com elevada e absoluta sabedoria. Mas, depois, este ministério está no coração de todos as pessoas que se movem pela humildade, pela tolerância e pelo respeito pelos outros.

O poder de perdoar pecados, é exercido por todos quando se confessam e se perdoam uns aos outros, porque não conseguem ser felizes sem viverem frequentemente a força e o poder de uma das seguintes expressões: «desculpa»; «perdão»; «não devia ter dito ou feito»... «Muito bem»; «Estás perdoado»; «tudo esclarecido»; «esquece»; «vai em paz»; «fica sossegado»; «não se fala mais nisso»...

A verdadeira reconciliação é esta e a meu ver ainda é a que move o mundo, onde os trilhos são feitos de chão de miséria fedorenta.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

O que é a paz?

A paz é uma realidade interior e exterior que todos os homens procuram. Alguns autores separam uma paz da outra, mas outros, numa perspetiva mais conciliadora, entendem que uma não é sem a outa. A doutrina da Igreja sobre esta matéria, também entende claramente que a paz exterior é fruto da paz interior. Ou seja, uma não é sem a outra, estão ambas as dimensões da paz ligadas entre si.

Santo Agostinho, no Livro 19 da «Cidade de Deus», deu-nos a primeira definição de Paz, que vai influenciar todas as definições posteriores: «A Paz de todas as coisas é a tranquilidade na ordem». Depois procurou exemplificar com nove casos, que vão desde «a paz da alma racional» à «paz dos cidadãos», passando pela «paz doméstica». Em tudo, há que fixar e lidar com dois elementos cruciais: a harmonia e a ordem. A primeira, é a tranquilidade desejada nesse estado de alma que todas as criaturas anseiam. E a ordem, como diz Santo Agostinho, é «a disposição que segundo as semelhanças e diferenças das coisas confere a cada uma o seu lugar».

Assim sendo, definiremos, hoje, a paz interior como a tranquilidade do espírito individual, proveniente da ordenação das coisas do mundo e da vida. Sem deixar de mencionar que os aspetos da consciência em comunhão de amizade com Deus, com os homens e com o Universo, são elementos essenciais para esse pleno encontro com a harmonia interior da pessoa. A paz exterior (social) será a boa e tranquila convivência com todas as coisa para tal ordenadas.

Porém, o entendimento sobre a paz nem sempre foi pensado desta forma. Se nos remetemos à antiguidade descobrimos em filósofos como Heraclito, «que a guerra é a mãe de todas as coisas», dá logo a ideia, entendida e defendida por muitos que a novidade só é possível com os conflitos e que a história humana não se faz sem as guerras, mesmo que a morte e a destruição sejam o preço que muitos tenham que pagar.

No entanto, não foram menos incisivas as teorias de Maquiavel (séc. XV) com a sua «arte da guerra» e por Nietzsche (séc. XIX) as «guerras» que justificam o Super-homem, até a mais sofisticada, mas não menos violenta «luta de classes» de Marx e de Mao Tse Tung (séc. XX), sem nunca deixarem de ser perseguição de estratégias para unir os opostos.

Como se percebe nem sempre a paz foi entendida do mesmo modo. A cultura Ocidental, também tem conceitos distintos para entender a paz e que muitas vezes dependem dos diversos entendimentos sobre a guerra e sobre os conflitos. Se na cultura ocidental, surgiram diversos modos de conceber a ideia sobre a paz deveu-se ao judaísmo, aos gregos, aos romanos e ao cristianismo.

Os diversos termos da paz são os seguintes: 1º «Shalom», no meio de guerras e conflitos o povo de Israel desejou esta paz como bênção. Shalom, significa plenitude, que é o conjunto de todos os bens. Mas nesta forma ideal de pensamento sobre o valor da paz inventou-se a «Guerra Santa».

O termo grego para a paz é «Irene», o ideal do irenismo, seria alcançar o bem estar entre homens e cidades. Também diante deste patamar ideal sobre a paz, criou-se um contraponto, o da «Guerra Justa». Os gregos entendiam-se autorizados a combater os outros povos destinados à escravatura. Havia ainda um outro ideal para os gregos «Ataraxia», que significava não sofrer com nada, quase nada sentir, exatamente, o mesmo ideal do Nirvana oriental.

O termo latino é o seguinte: «Pax». Este termo tem a mesmo raiz de «pactum». Estabelece-se um pacto, uma trégua, uma ordem que impõem «a pax romana». Esta paz durava pouco, pretendia estabelecer a paz para o imperador, mas estava de mão dada com os exércitos que dominavam e subjugavam a Roma as outras nações.

A doutrina cristã também criou um significado para a paz, que radica na palavra de Jesus Cristo: «a minha paz... Não a dou como o mundo a dá...». A definição do termo paz, para o cristianismo está contida na pessoa de Jesus: «a Paz de Cristo». Estamos perante uma realidade nova, fruto da justiça e dom do Espírito Santo, que inclui todas as outras definições de paz, mas acrescenta-lhes uma característica essencial: é uma relação de amor. Mas, também ajudou a justificar guerras e opressões sempre que se esqueceu que era dom gratuito de Alguém e se convertia em prepotência e autoritarismo religioso chamado «clericalismo».

A paz, é um dom que Deus concede a todos os corações humanos que se predispõem ao seu acolhimento. E por ser essa realidade, dom de Alguém, é sempre precária, isto é, está sujeita aos condicionalismos e interesses mundanos. Assim, não devemos esquecer, a paz é trabalho nosso e dom de Deus. É sempre tarefa e encontro. Por isso, devemos entender a paz como Missão e Graça. Ou ainda, como acolhimento e desejo de encontro com Alguém que deseja sempre e em todas as circunstâncias a salvação.

Onde estão os pacíficos, os que promovem a paz... Segundo Jesus, pacífico é aquele que é «fazedor de paz». E as Bem-Aventuranças anunciam que bem-aventurados são os que constroem a paz, «porque serão chamados Filhos de Deus». Deste modo, promover a paz é ser «Filho de Deus», isto é, «ser amado», ser fruto da relação. E no amor está a Bem-aventurança, a Plenitude, o Shalom.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

O Padre Eleutério


Deixou o mundo da materialidade. Morreu mergulhado na depressão, no sofrimento e no abandono. Tinha uma bondade muito além das medidas. Por isso, muitos abusaram dele e muitos contribuíram para se considerar ainda mais de vítima de si mesmo. Uma «doença» crónica que lhe corroeu as energias toda a vida neste mundo.

Há muito que tinha deixado de viver. Não queria viver. Foram inglórias as tentativas para o ajudar nos últimos tempos. Poucos (alguns amigos) compreendendo a sua forma de ser, tentaram de tudo para o ajudar. Ninguém conseguiu engendrar a melhor solução para o salvar daquele oceano de tristeza onde estava mergulhado. 

Sempre foi uma vítima de si próprio. Da sua insegurança. Dos seus medos. Do que diziam ou pensavam os outros acerca dele. Não admira que o melhor companheiro que encontrava para se refugiar e para esquecer os males que carregava às costas, ter sido o álcool.

Nesta hora, à parte todas as balelas que se vão dizer dele e dos rios de lágrimas de crocodilo que se vão verter, será preciso também lembrar que foi vítima da incompreensão geral. Vítima da família. Vítima de alguns colegas padres. Vítima de alguns bispos. Vítima de tantos que se serviram dele para o «explorar», sabendo da sua «doença» que se chamava insegurança e propensão fácil para a vitimização.

Enfim, morreu mais um padre votado ao abandono. E nestes casos o melhor que acontece é sempre a libertação pela morte. Porque se livrou de si e dos outros (nós todos) deste mundo que não socorrem as vítimas, mas que quando podendo ainda as maltratam mais e descartam como se de lixo se tratassem.

Confesso que muito mais podia ter feito eu por ele. Sinto-me com algum remorso. Foram um sem números de chamadas nunca atendidas. Procurá-lo sem nunca o encontrar. Tudo isto é em vão referir por hora, porque não resolve nada. É apenas o meu lamento e mais uma certeza de que ajudar as pessoas é dos trabalhos mais difíceis de levar acabo.

Mas, positivamente, guardarei dele a sua sabedoria, abertura de espírito e todos os conhecimentos abalizados em áreas hoje desprezadas pelo ensino e pela incultura geral que nos assiste, o grego, o latim e o hebraico. Era um profundo conhecedor da literatura clássica. E provavelmente dos padres da sua geração (e da atual), o que melhor conhecimento tinha do Concílio Vaticano II. Várias vezes o ouvi citar de cor passagens longas do texto conciliar. Infelizmente, por ter sido descartado, não contribuiu como deveria ter sido nestas matérias para engrandecer o conhecimento geral da sociedade madeirense. A inveja clerical e os ciúmes que campeiam a Madeira destroem pessoas.

Foi meu professor. Foi meu pároco. Um grande, mas mesmo muito grande obrigado por tudo o que me ensinou e testemunhou de bondade, de fé e de esperança. Descansa em paz Padre Eleutério.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Apontamento 11 - Acordar

 
Acordar num largo e doce silêncio. Uma sorte tão grande!

Sim, é uma sorte dos deuses, para não dizer dos diabos, se pensarmos que continua a existir gente que morre quando quem os lidera está cego pela vaidade e pelo desejo de provar a todo o custo a sua superioridade.

Nessa enxerga de silêncio largo e doce, olhou para o quadro, tipo pagela gigante de um santo desconhecido, onde pôde balbuciar rezando entre os lábios as palavras em profundo reconhecimento na seguinte legenda: «feliz do que pensa no pobre e no fraco, o senhor vai torná-lo feliz sobre a terra, e não o entregará ao inimigo, transformando a doença em vigor».

As mãos esguias bem abertas e os dedos compridos e finos, cobriram o rosto completamente e lentamente deixou que elas fossem deslizando pelo rosto abaixo, ajudadas pela lubrificação das lágrimas que lhe saltavam dos olhos num choro compulsivo, como se fossem rios em dia de chuvas abundantes.

Naquele momento sereno de liberdade outra vez concertada pelo descanso e pelos pensamentos, sentiu um pulsar da alma misterioso de onde veio este suspiro entusiasmante: «seja o que Deus quiser».

Nada vale tanto como um estribo. Os pés nos estribos seguem o caminho certo e em segurança. Nada se consegue quando se perde as estribeiras, a paciência. Bem haja a serenidade e paz.  

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Salgueiro Maia

Filme

Este ano comemorei o 25 de Abril assistindo ao filme, «Salgueiro Maio - O implicado» do realizador Sérgio Graciano, que está a ser rodado nos cinemas do nosso país. 

É a história do capitão da Revolução de Abril de 1974. É uma história que implica o futuro do nosso país, mas que também se cruza com a vida pessoal de Salgueiro Maia. Na história entram eventos históricos, relatos pessoais, revelações íntimas, emoções que acompanharam o capitão Salgueiro Maia ao longo de toda a sua vida.

Um dos maiores símbolos do 25 de Abril, Fernando Salgueiro Maia nasceu a 1 de Julho de 1944, em Castelo de Vide (Portalegre). Fez campanhas militares em Moçambique e na Guiné-Bissau, tendo ascendido ao posto de capitão em 1971. Como delegado da Arma de Cavalaria, fez parte da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA). Um dos seus feitos mais famosos foi quando, no dia 25 de Abril de 1974, comandou a coluna militar que partiu da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, ocupou a Praça do Comércio e cercou o Quartel do Carmo, em Lisboa, levando à rendição de Marcello Caetano, então presidente do Conselho, e à queda definitiva da ditadura do Estado Novo. Salgueiro Maia faleceu a 3 de Abril de 1992, devido a um cancro. Tinha 47 anos.

Não podia ser melhor a minha comemoração dos 48 anos da Revolução dos Cravos. Pois, permitiu que eu fugisse dos discursos circunstanciais dos líderes da turba, que rebuscam todos os anos nesta altura o verbo fácil, os estereótipos habitués, as palavras de ordem e a iconografia convencionada de Abril para parecer bem à «manada» adormecida da democracia incompleta que vivemos.

Tantos falam, muitos postam imagens e dizem coisas sem saberem do que falam. Tudo sem consequências, porque logo no dia 26, voltamos a ter o medo à porta, todo o rebanho a correr sem saber para onde, a falar de guerra e, simplesmente, a tentar sobreviver adormecidos sobre a almofada do esquecimento dos valores que a Revolução de Abril reclamou.

Se já nutria grande empatia por Salgueiro Maia, revigorei-a com este filme e como se vulga dizer, tornei-me verdadeiramente seu fã. Um homem de atitudes elevadas. Bem ciente das suas responsabilidades. Muito injustiçado pelos poderes que no tempo democrático se alaparam na gamela governativa. Sofreu com isso. Apesar dos apesares, morreu vencido pelos limites da lei natural que nos assiste, mas deve ter seguramente ter morrido a pensar que valeu pena quando nenhuma alma diante do Adamastor da incerteza se faz pequena.

Estamos diante de um homem sem medo. Ou melhor, um homem que ousou quebrar a bruma densa do medo que assolava o país de alto abaixo pelas mentes sombrias que dirigiam um povo acabrunhado, perdido no tempo e sem ideia nenhuma sobre o futuro.

Eis um homem de coluna que vencendo o marasmo do «sempre foi assim» ou a ideia da vida «gemendo e chorando no vale de lágrimas», pegou na coluna militar desde Santarém até Lisboa pelos caminhos do sonho e do desejo da mudança. Veio tal como um Moisés pelo deserto adentro com um povo inteiro às costas em busca dos alvores da libertação de todas as formas de opressão.

Nada disto pode ser esquecido por nenhum palavreado hipócrita daqueles que cuspiram sobre o 25 de Abril, mas agora se arvoram em paladinos de uma Revolução que não gostaram e não respeitaram quando tinham o palco certo para o fazerem. Cuidado com os cantos de sereia que andam a nos venderem ao preço da banha da cobra.

terça-feira, 26 de abril de 2022

O espanto como caminho de salvação

 

O Cristianismo, marcado por tantos momentos trágicos, onde descobrimos também o quanto foi prejudicial à humanidade, contrariando o que preconizava na sua essência, o amor ao próximo como a única possibilidade de entendimento e salvação humana. Mas, se foram muitos os algozes dessa fatalidade infeliz, como pioneiros do horrendo e da maldade contra as pessoas, também há os que foram mártires e pioneiros do amor, ao jeito de Jesus Cristo, a favor da libertação humana.

Porém, apercebemo-nos hoje que o amor não parece ser o caminho. O ódio e a intolerância marcam os dias. Por isso, não sendo possível o caminho do amor, seja o espanto ou o assombro do mistério que abraça a todos sem distinção. Jorge Luis Borges confirma isso mesmo: «Não é o amor que nos une, mas o espanto».

É preciso escolher um caminho entre os vários caminhos que estão aí presentes diante dos olhos de todos. O que queremos mesmo para nos salvarmos, é o espanto, é a vida ou são as bombas, a guerra... 

O espanto, até pode ser no lugar do amor, como já dissemos. A vida é a maior riqueza e não temos alternativa a esta. A guerra, arrasta destruição e morte. Tudo são evidências incontornáveis. 

Seguro é que no caminho da guerra sofrem e morrem os povos, e ficam feridas com agudo sofrimento insanável para sucessivas gerações. O Papa Francisco disse-o sem tibieza: «A guerra é feita pelos governos e é padecida pelos pobres e pela gente comum». Não nos faltam provas cabazes que confirmam a acutilância deste pensamento.