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terça-feira, 30 de maio de 2017

O Deus do século XXI

Sónia Silva Franco, escreveu o seguinte texto para a rubrica do Banquete da Palavra «Deus e eu». Obrigado Sónia... 
A insaciabilidade de conhecimento tão característica do ser humano, lançou-nos nesta busca desenfreada de respostas aos porquês. O Quo Vadis da nossa existência esteve, desde sempre, ligado a forças superiores. Os homens primitivos adoravam as forças da Natureza, numa mescla de medo e veneração. A presença do divino continua a ser uma realidade nos dias de hoje. 
A sociedade moderna, tão bem caracterizada pela investigadora Danièle Hervieu-Léger, não remeteu para o esquecimento a necessidade premente da religião. Ela continua presente no nosso quotidiano, nas nossas preces, nas nossas aflições e principalmente nas nossas dúvidas. Aliás, Leandro Karnal, historiador brasileiro, explica de forma brilhante esta dicotomia em que, por um lado a humanidade toma rédeas do seu destino e, por outro, continua presa nas suas crenças religiosas. É que a ciência, ao contrário do que se julgava, não tem respostas para todas as questões que assolam o ser humano. A ciência foi incapaz de resolver os problemas colocados. Ao invés, a religião oferece respostas para tudo, dando ainda o consolo da imortalidade da alma, tornando mais fácil a nossa existência perante uma certeza absoluta: a morte. A religião atua como os “ses” e os “mas” do nosso quotidiano. O conforto em encontrar uma explicação que dê sentido à vida, à dor, à perda, ao medo, alimenta as correntes religiosas e seitas da modernidade.
A religiosidade tornou-se mais individualista, numa pessoalização do Divino. Continua-se a pedir proteção a uma entidade superior, sem que para isso seja necessário frequentar as casas religiosas com a assiduidade de outrora. Atrevo-me mesmo a dizer que o Deus tornou-se moderno. Foi “vítima” da modernização da sociedade, nesta busca por respostas e por consolo àquilo que o mundo real, científico, empírico, não consegue resolver.
Os chamados Povos do Livro – Judeus, Cristãos e Muçulmanos – partilham o mesmo Deus. São religiões monoteístas que diferem, entre si, nas diversas conceções religiosas. Por exemplo, os Judeus não aceitam Cristo como Filho de Deus, enquanto que os muçulmanos entendem que Jesus foi apenas um profeta, igual a Maomé e recusam-se a aceitar a trindade cristã. Não há “Pai, Filho e Espírito Santo” no mundo islâmico. Deus é apenas um. Único. “Não há outra divindade senão Deus e Muhammad é seu profeta”. Este é o lema que rege todo e qualquer muçulmano.
Para estes três povos, Deus tem muitos significados: tanto pode ser vingativo, como misericordioso. Benevolente, supremo, omnipotente, como pode ser castigador e até mesmo egoísta. Amor e temor são as palavras que melhor caracterizam os sentimentos dos fiéis em relação a um Deus supremo.
Já nas religiões politeístas, encontramos na antiga Grécia, por exemplo, a magia do mundo helenístico, fértil em deuses de todas as formas e feitios. Cada deus tinha a sua função, os seus seguidores e os seus rituais.
Já no Egipto da Antiguidade, o culto dos mortos assumia uma importância extrema e vital para a civilização. Em torno da vida pós-túmulo, em torno dos múltiplos deuses e das suas exigências, os egípcios tinham toda a sua existência terrena condicionada. Sobre eles, pendia o julgamento no Além, decisivo para a continuidade da existência ou desaparecimento imediato. Em vida, o mais comum dos mortais tinha de obedecer às diretrizes emanadas pelos deuses e tinha de viver de acordo com as regras que iriam salvar a sua existência após a morte.
Na Índia, temos uma miscelânea de deuses, à qual os europeus chamaram de Hinduísmo. Na verdade, temos deuses distintos no panteão indiano e quem adora um, não adora o outro. Nesta sociedade de castas, o ser humano nasce para morrer e renascer num outro ser, numa outra condição. Encontramos ainda o Budismo, uma religião sem Deus, mas com grande expressão nas suas três vias. Para os praticantes desta religião e, ao contrário dos hindus, é possível o homem romper com o ciclo constante das transmigrações. Através de muita prática e meditação, esse ciclo pode ser rompido graças à iluminação que culmina no Nirvana.
Já os gnósticos assumem-se como detentores de um conhecimento superior. Não são fiéis, não precisam de “intermediários” e atingem diretamente esse conhecimento superior.
Em todas as religiões, o Sagrado está presente. Pode ser chamado de Deus ou de Nirvana, mas não deixa de ser sagrado. O Homem, desde os primórdios dos tempos, refugia-se neste conceito para encontrar um sentido para a vida e principalmente para a morte. O medo de ser finito, de tudo acabar com o último suspiro, faz com que o ser humano tenha nos seus genes a vontade de acreditar em algo superior. Algo que lhe dê o conforto de que a essência continua algures, mesmo depois de sermos devolvidos à terra e de nos transformarmos em pó… 
Sónia Silva Franco

Venezuelanos madeirenses regressam à ilha

1. Tenho acompanhado com algum interesse tudo o que se vai dizendo por aí, a favor e contra o êxodo de venezuelanos madeirenses. A todos nós este regresso diz-nos respeito de alguma forma e vai lançar-nos uma série de desafios.

2. Os discursos incendiários que vamos assistindo contra as ajudas que os governos - nacional e regional – supostamente venham a disponibilizar, trazem o mesmo veneno xenófobo e racista, que ouvimos contra os refugiados que fugiam das guerras do Médio Oriente. O mal não está em quem precisa de ajuda perante uma urgência e nessas circunstâncias não podem existir condições para que a ajuda se faça. O mal está em quem não olha a circunstâncias para ser desumano e aproveitar para escorrer veneno e outras porcarias sem ter em conta o sofrimento da desgraça alheia. Mas quando está aflito deve tomar a dianteira para implorar compaixão.

3. Obviamente, que em relação aos emigrantes da Venezuela, não esqueço a vaidade e gozo de tantos quando chegavam aqui cheios de notas que gastavam desmedidamente em foguetes, em casas enormes e feias por essa Madeira dentro, que tanto descaraterizaram a paisagem da nossa terra. Não são eles os únicos culpados disso, os de cá também são. Não esqueço aquele sotaque irritante, meio madeirense meio venezuelano, que tudo e a todos tratava por «mira» e por «essa banha». Também não esqueço as falcatruas que alguns fizeram em termos de bens patrimoniais contra os madeirenses seus familiares que não deixaram a Madeira, só porque estes tinham dinheiro à fartazana. Tanta coisa que me lembro e que nos humilhava e que até nos pode fazer pensar que contributos deram esses tais madeirenses que abandonaram a Madeira à procura de fortuna? Que investimentos fizeram que gerasse riqueza e emprego na nossa terra? – Estas e entre outras perguntas legítimas que podem vir à balha agora. Mas, que não devem cegar-nos a humanidade e o sentido da partilha, da amizade e da solidariedade perante as urgências. A humanidade deve prevalecer perante todos os condicionalismos do mundo.

4. Por isso, nesta hora o que deve estar em causa é que somos chamados a receber Venezuelanos que passam por dificuldades e que estão numa situação de emergência. É isso que nos deve mover, fora de condições tolas, receber de coração aberto quem chega. Não nos falta espaço e precisamos que entrem pessoas, para que engrossem de sangue novo a nossa frágil população envelhecida e carente de crianças. Tomara que fossem povoadas tantas freguesias da nossa terra, que pouco falta para se tornaram lugares fantasmas.

5. Não é hora de xenofobias nem muito menos a hora de acerto de contas. Não nos compete fazer isso, porque nós madeirenses várias vezes fomos sabendo o que é estar em situação de emergência e necessitados de solidariedade. Não estamos muito longe disso. Por isso, de acordo com as nossas possibilidades, agora chegou a hora do acolhimento e da solidariedade com aqueles que precisam de nós. Embora isso não seja condição, mas se ajudar a quebrar as investidas da maldade, pois então pensemos que nestes venezuelanos que necessitam de ajuda, escorre nas suas veias sangue madeirense.

A humanidade está viva

Cá te viste
1. É muito retemperador para o ego e para o nosso equilíbrio psicológico que assim do nada alguém no meio da rua nos aborde, perguntando por nós, se está tudo bem, se não estamos ou estivemos doentes, porque há algum tempo que não somos vistos passar num determinado lugar e às horas habituais. Mais saboroso ainda se a pessoa que nos fala nunca nos falou e não nos lembramos dela de parte nenhuma. Esta experiência retempera-me as forças, a esperança e a fé na humanidade.

2. Nos detalhes podemos saborear a diferença, a presença de Deus, a riqueza da humanidade, o sentido da amizade e da solidariedade, mesmo que venha anónima e dos corações mais inesperados.

3. Fernando Pessoa, cremos que por ocasião da morte da irmã, quando ele tinha apenas 13 anos, escreveu o poema: «Quando ela Passa», que começa deste jeito: «Quando eu me sento à janela / P'los vidros qu'a neve embaça / Vejo a doce imagem d'ela / Quando passa... passa.… passa...». No belíssimo poema a «Garota de Ipanema» cantado por Caetano Veloso, ficou imortalizado esse passar: «Ah, se ela soubesse / Que quando ela passa / O mundo inteirinho se enche de graça / E fica mais lindo / Por causa do amor».

4. É toda esta impressão que nos anima e que nos faz sorrir, agradecidos pela dádiva de que haverá alguém sempre neste mundo que nos vê passar e que se não passarmos, por causa do amor, sempre nos dirá alguma vez: «desculpe, meter-me consigo». Venham sempre estes metediços, porque nós estaremos sempre disponíveis para agradecer muito e sorrir de felicidade, porque a humanidade está viva e recomenda-se

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O obscurantismo religioso pode ser fatal

1. Os radicalismos, há-os em todas as religiões. Nenhuma se pode gabar de não ter integristas que não olham a meios para fazer valer as suas manias pessoas envoltas nas mais piedosas atitudes. Porém, hoje salta-nos à vista mais fortemente o radicalismo expresso na Religião Islâmica, com a proliferação de grupos radicais fundamentalistas armados até aos dentes, que não se inibem quanto à espoliação, expulsão e morte de populações inteiras se não se converterem ao Islão ou então não aderirem às pretensões desumanas dos ideais que estes fundamentalistas defendem.

2. Não nos admira que o fundamentalismo encontre facilmente aderentes no seu local próprio, isto é, entre as famílias muçulmanas, onde a educação e a vivência segue os trâmites da tradição e regras islâmicas. Porém, deixa-me perplexo e impressiona-me sobremaneira que este radicalismo encontre adeptos no Ocidente entre famílias cristãs católicas onde a educação está marcada por uma ética ocidental cristã.

3. Tudo deve ter a ver com a facilidade de acesso aos meios de comunicação dos nossos tempos. Antes parecia dar-nos alguma tranquilidade que a guerra estava longe, a fome acontecia em países distantes «habituados» a serem pobres como os de África, Médio Oriente e alguns da Ásia e América Latina. Este pensar já não pode tranquilizar-nos mais, porque a qualquer momento pode ser gerado no seio de uma qualquer família cristã católica um radical que pronuncia palavras em nome de um «deus violento», cuja ideia do martírio pode ser o mais disparatado possível.

4. Neste sentido, devemos estar atentos, educar bem as crianças no sentido de que a religião é um caminho de libertação e de sentido da vida. Não pode nenhuma expressão religiosa ser caminho de opressão e de manipulação, não pode ser lugar do martírio contra a dignidade e a vida dos outros. Se tiver que ser martírio que seja na promoção da vida e do bem para todos.

5. A religião não precisa que sejamos tão sérios ao ponto de fazer sofrer só porque a cegueira tomou conta do coração e da alma. Precisamos de procurar uma vivência religiosa que faça crescer o mundo na fé e na esperança, nunca distorcendo a verdade para que os intentos egoístas sejam a regra da comunidade mergulhada na mais profunda cegueira e no obscurantismo anacrónico.

sábado, 27 de maio de 2017

Momento fúnebre

Para o nosso fim de semana. Sejam felizes sempre, nunca prejudicando ninguém.
Naquele dia sem hora 
E sem guia misteriosamente
Um fogo enorme dentro da mão
Que os meninos já mortos
Denunciam a desolação 
Das mães que choram
Para sempre a inutilidade do parto.

Todos os frutos perdidos
Caíram podres no chão 
Da lama negra e repugnante
Como sinal da fétida injustiça
De muitos homens
Quando lhes falta o pão
Sobre a mesa posta dos inocentes.

É este o retrato horrendo
Que os dias contados 
Para sempre refletem
Se teimosamente os corações
Estiverem sempre mortos
Dentro de corpos vivos. 
JLR

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Uma foto dois rostos que dizem tudo sobre o estado do mundo hoje

O Papa está preocupado com a paz ou a falta dela neste mundo mergulhado na violência e na corrida ao armamento.

O Donald Trump está feliz e entusiasmado com o seu sucesso, acaba de vender este sorriso por uma encomenda da Arábia Saudita de 110.000 milhões de armas às empresas de armamento americanas. O sorriso Trumpista é o sorriso de um irresponsável que não sabe ler nada daquilo que se está a passar no mundo.

O rosto triste e pesaroso do Papa exprime a preocupação, é um alerta à humanidade: para onde iremos com loucos deste teor que alguém se lembrou de colocar a governar um país com a influência conhecida de todos sobre os destinos do mundo inteiro. 

Não nos vamos esquecer desta foto e a ela voltaremos seguramente.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

O sentido da vida e a Ascensão

Domingo da Ascensão (28 maio de 2017)
O que significa a Ascensão de Jesus? Ou, então, o que significa dizer que Jesus subiu aos céus? - Com toda a certeza que Jesus subiu aos céus. Porém, dizer que Jesus subiu aos céus é o mesmo que dizer: "ressuscitou", foi glorificado, entrou na glória de Deus.
Cristo subiu ao céu, o lugar do Pai e com Ele todos nós subimos à mais alta dignidade, tornamo-nos «coisa» divina: realidade divinizada, semelhante àquilo que Deus é, eternidade e plenitude. Santo Agostinho afirma-o de forma magnífica: «Considerai, com efeito, irmãos, o amor da nossa cabeça. Já está no céu e ainda trabalha sobre a terra, enquanto sobre a terra se afadiga a Igreja: aqui Cristo tem fome, tem sede, está nu, é forasteiro, doente, preso. Ele mesmo o disse: que sofria tudo aquilo que sobre a terra o seu Corpo padece. No fim dos tempos separará o seu corpo para a direita e os outros, pelos quais agora é oprimido, para a esquerda» (S. Agostinho, Sermão 137, 1-2).
No entanto, inquieta-nos saber que o corpo de Jesus foi colocado no sepulcro. Deus não precisava de nada do Seu Corpo material para tomar o Corpo de "Ressuscitado" que São Paulo chama de "corpo espiritual" (cf. 1Cor 15, 35-50). Numa palavra o mistério da Ascensão, por um lado, é o momento da partida de Jesus para Deus Mãe e Pai, mas, por outro, é também o momento em que toda a humanidade com Ele e Nele se vê elevada ao mais alto da dignidade. Isto é, em Jesus elevado ao céu toda a humanidade é tomada por Deus para se divinizar também. E nesta perspectiva fica confirmada a palavra de Santo Ireneu quando nos diz o seguinte: "em Jesus Cristo, tornamo-nos todos deuses".
Esta expressão parece forte esta expressão, mas revela-nos a densidade do amor de Deus encarnado na história concreta do mundo. A nossa condição material, perante o mistério da Ascensão de Jesus Cristo, assume o sentido total e último, o da glória de Deus. E, dessa forma, participamos efectivamente da divindade de Jesus e tomamos parte da mesa do banquete da plenitude da graça que Deus concede a todos os que se deixam envolver pelo seu amor.
Lucas, revela-nos que toda a realidade da terra: amores e a falta dele, sucessos e desgraças, aventuras e desventuras, justiças e injustiças, alegrias e tristezas, esperanças e desesperanças, saúde e doença, ausência de dor e sofrimento e até os factos mais absurdos, como uma morte cruel... Nada está fora do plano de Deus. Tudo em Jesus se envolve na "multimédia" do amor. A isso chamamos de salvação, que se encontra na elevação da vida que devemos manifestar nas palavras e nos gestos concretos.

Deus e eu

Deus e eu. 
Hoje com um reputado advogado e destacado historiador da Madeira. Mais um texto que nos aponta para Deus e que seriamente no convida à reflexão interiorizada. Silenciosa. Muito obrigado.
Das poucas vezes que me falam em religião e em Deus, costumo responder que se trata duma busca solitária, porque em rigor ninguém pode provar de forma palpável e científica que Deus existe, ou não existe.
De modo que em princípio, as verdadeiras pontes para encontrar a existência de Deus ou a sua negação, são a fé e o coração; e cada um aproxima-se ou não de Deus através da negação, da dúvida ou da certeza.
Porque não sou bafejado pelo dom da Fé, e apesar das dúvidas persistentes, a exame da colossal imensidade do Cosmos e das suas leis, os milhares de milhões de galáxias, estrelas, planetas e cometas, cuja observação nos esmaga e emociona, o enigma dos buracos negros, e as recentes conquistas da física quântica, dão-me a certeza de que tudo isso não resulta do nada e são sinais que existe um Deus criador, que entre muitos outros predicados representa como que uma grandiosa e agigantada fonte de energia.
Cavando um pouco mais e cotejando a herança espiritual da estirpe humana, considero-me um seguidor da ética cristã e admito que Deus estará na vida e que a vida está em Deus.
Mas, notando também que em horas de grande sofrimento e aflição, por vezes, nos sentimos ignorados, desamparados e abandonados pela Divindade; e que as leis da natureza parecem cruéis e impiedosas, pois predomina a lei do mais forte, os animais mais fracos alimentam os mais possantes, e os pobres, desvalidos, e desprotegidos são os que mais sofrem as vicissitudes e as nefastas consequências das catástrofes e das epidemias, tenho profundas dúvidas que haja um Deus, tal como nos apresenta o cristianismo - omnisciente, omnipotente, infinitamente justo, e generoso pai e mãe da Humanidade.
Será muito disso, mas duvido que tudo possa, pelo que muitas vezes me sinto próximo de certas conclusões do Panteísmo, que declara que nós e o que nos rodeia faz uma pequena parte de Deus ainda imperfeita, e a caminho da perfeição plena.
De modo que Deus é infinitamente bom, justo, e omnisciente porque a sua parte perfeita tudo sabe; mas não será completamente omnipotente porque ainda comporta uma pequena fração que não pode tudo, mas que com a vitória do espírito alcançará, então, a perfeição e a justiça absoluta.
Rui Nepomuceno

terça-feira, 23 de maio de 2017

O perdão e a estupidez

Cá te viste:
1. Sobre o perdão sabemos que é um valor dos mais nobres que existe. No Evangelho Jesus radicalizou-o de forma enigmática, para dizer que devemos perdoar sempre. Está dito assim: «Então Pedro aproximou-se de Jesus perguntou: "Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele me ofender? Até sete vezes? Jesus respondeu-lhe: "Eu digo-te: - não até sete, mas até setenta vezes sete» (Mt 18, 21-22). Porém, já antes tinha advertido noutra passagem: «Eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. Acautelai-vos dos homens» (Mt 10 , 16-17). Este contrabalançar é interessante. E fica claro que perdoar sim, mas sem ter que ser estúpido por nenhuma vez.

2. O perdão como se vê quando exercido em qualquer circunstância é um gesto nobre e essencial para a paz nos corações e no mundo. Porém, porque sabemos da fragilidade humana e da sua tendência para a reincidência no mal, devemos, mesmo exercendo o perdão, agir com prudência ou cautela, para que não nos tome a estupidez nem muito menos ninguém se aproveite disso para fazer vingar os seus frequentes instintos malévolos. Não quero com isto dizer que nenhum crime ou mal merece perdão, pelo contrário, merece sim senhor, mas nada pode ser como dantes depois do mal ter sido feito. A prudência é boa conselheira.

3. A consciência entre o ter que perdoar e a estupidez anda numa fronteira muito ténue, alguns autores pensaram nisso, por exemplo, Friedrich Schiller: «contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão». Há um dado curioso que devemos registar, passamos do tempo em que se gritava que não havia valores, para o tempo da confusão geral dos valores. Tanto pode ser perdoar, mas trair ao mesmo tempo, tanto pode ser gabar-se da sua dignidade, mas mergulhar na mais profunda alienação e manipulação e ainda, tanto pode ser que antes se tenha vivido o pior do mundo com esta ou aquela pessoa, mas à conta de uma dependência estúpida, mesmo correndo-se o risco de tudo se repetir novamente, encetam-se os mesmos caminhos e fazem-se as mesmas opções. Viva o tempo novo em que o mais inverosímil acontece e ninguém tem que se admirar com isso, porque cada um acha-se dono de si e quiçá do mundo inteiro. Estúpida ilusão.   

segunda-feira, 22 de maio de 2017

A noite escura do clero

1. Há monumentos enormes que assumiram a sua «noite escura». Este assunto surgiu-me perante notícias cada vez mais frequentes sobre a depressão e consequente suicídio de sacerdotes, particularmente, na Igreja Católica do Brasil, embora também estejam a surgir alguns casos em outras partes do mundo. Na Itália chamam a este sinal dos tempos: «O sindroma do Bom Samaritano desiludido».

2. Só deixo de parte alguns exemplos bíblicos (São Paulo e São João Evangelista) e da história do Cristianismo (São Tomás e Santo Agostinho), por motivos de espaço. Por isso, vou rebuscar São João da Cruz, figura incontornável do séc. XVI, com a sua «Noite Escura da Alma». Um magnífico poema sobre a inquietação da alma que procura ansiosa o gozo de Deus. Deste tempo também há uma outro exemplo muito sugestivo, Santa Teresa de Ávila, que nos seus vários escritos, também expressou misticamente os seus encontros e desencontros com a divindade. No ressoar de presenças e ausências, na hora morte exclamou: «Chegou o momento de vermos, meu bem amado Senhor». A par desta enorme mulher, destaque-se também Santa Teresa do Menino Jesus (Lisieux), que também fez eco da presença e ausência de Deus com a sua «História de uma alma».

3. «A depressão do altar», como se tem vindo a chamar esta leva de depressões entre o clero, começa a preocupar a Igreja Católica e neste momento são mais a perguntas do que a respostas. Alguns psicólogos começam a estudar os casos de suicídio que já aconteceram. A título de exemplo, diz o psicólogo Enio Pinto, autor do livro «Os Padres em Psicoterapia» (editora Ideias e Letras): «A vida religiosa não dá superpoderes aos padres. Pelo contrário. Eles são tão falíveis quanto qualquer um de nós». No fundo, serve esta afirmação para dizer que a vida sacerdotal hoje esvaziou-se do clericalismo do passado que marcava a agenda e a vida das pessoas em geral, a formação do clero em termos académicos alterou-se profundamente, adaptando-se ao modus universitário em vigor na generalidade das universidades, mas a vida espiritual e comunitária dos futuros padres continua globalmente mais ou menos sem alteração, embora se fale muito em família, unidade e comunhão para cima e para baixo, mas na prática estes valores só funcionam quando interessam aos poderes.

4. Vivemos um tempo em que a generalidade das instituições converteram em domínios obscuros, que toleram as pessoas só porque são necessárias, basta repararmos no futebol, um poderio que tem pessoas porque são necessárias, mas a generalidades dos domínios humanos também estão assim. Precisam das pessoas até certa medida, se fosse possível dispensá-las seria para já.

5. No domínio do stress que conduz à depressão um outro psicólogo afirma: «O grau de exigência da Igreja é muito grande. Espera-se que o padre seja, no mínimo, modelo de virtude e santidade», afirma o psicólogo William Pereira, autor do livro «Sofrimento Psíquico dos Presbíteros» (editora Vozes). Por conseguinte, o padre hoje tornou-se o «funcionário» do «supermercado» religioso em que as sociedades actuais converteram as igrejas e, particularmente, as paróquias. Nesse âmbito, poucos reparam ou sequer lhes interessa que os padres estejam tristes, cansados ou doentes. Os padres têm que estar à disposição 24 horas por dia, sete dias por semana e todos os dias do ano, para que não lhes falte o serviço quando se dirijem ao «supermercado» religioso.

6. Por fim, falta perceber o mínimo, em nenhum campo da vida humana, mesmo até nas mais pretensamente saudáveis, pessoas, tristes, cansada e doentes, sem amor próprio e com a sua auto estima bem integrada, estarão aptas para cumprir a sua missão e realizar com alegria as tarefas que lhes compete fazer pelo bem de todos.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Navegar na proa do sentido

Para o nosso fim de semana. Sejam felizes sempre, nunca prejudicando ninguém.
Sentei-me a descansar na proa do barco
e reforcei a esperança do marujo.
Era distante a viagem e perigoso o mar
- neste mundo é só uma vida que temos
é preciso nunca desistir de encontrar
aquele lugar paradisíaco de Adão e Eva
que perdemos.

Destemido parti daquele porto materno
dizendo adeus aos grilhões
da felicidade tolhida e curta.
Olhei adiante na linha do horizonte
onde por hora vislumbro apenas o vazio
ou as ondas tumultuosas que penso 
todos os dias no baloiçar frenético da embarcação
e nas encruzilhadas de uma história 
que se faz entre a paciência e o perdão.

Porém rasgam-se as ondas sem desistência
porque em qualquer percurso e opção
o que importa não é alienar-se com a meta
mas começar no início 
ciente que haverá sempre tormenta.
JLR

Uma no cravo e outra na ferradura

«Cá te viste»
É um ditado muito conhecido. O seu sentido é o seguinte: para ser fixada a ferradura em cavalos e outros animais semelhantes, sem ferir ou assustar o animal, o ferreiro bate alternadamente com o martelo ora no cravo (prego), ora na ferradura. Daí o ditado ter entrado na gíria popular para designar as atitudes dúbias e o equilibrista em cima do muro. É sinal de imparcialidade. Esta é em situações decisivas para a vida dos outros a pior das atitudes, porque dizer sim e não simultâneamente ou alternadamente faz mal ao corpo e à alma de tanta gente.

Não me digam que ter bons propósitos e fazer boas ações e ter maus propósitos e fazer más ações simultaneamente, virá contrinuir para mover o mundo e vida? - Nada. Zero.

Qualquer atitude que não seja capaz de ir até ao fim naquilo que se determina como decisão antecipada, vale pouco e diz muito de quem a pratica. Toda a atividade que ande assim ao sabor das ondas, levanta sérias dúvidas e todos sabemos o que pensa o povo sobre este incontornável assunto.  

Bem sei que na luta pelo poder a dialética, as posições antagónicas das várias forças em contenda, é um fenómeno necessário, mas só tolerável até certa medida. Aliás, bem sei que a coisa não é para seres inocentes e puros, requer uma ética conveniente que inclui até mesmo falsas atitudes sociais e públicas, mas se domina a lógica do poder pelo poder não serve para ninguém. Deve ser combatida essa mentalidade e deve ser colocada no devido lugar. A conquista bem clara e determinada deve estar ao serviço do bem de todos. E digo mais, quando alcançado o poder, deve estar para todos, mesmo até para os mais afoitos adversários.

Não ser capaz de levar até ao fim a sua determinação é o pior que se pode encontrar numa pessoa. Quando sou confrontado com isso fico deveras boquiaberto e quiçá inteletualmente enojado que até vomito à maneira do autor do Apocalipse: «Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca» (Ap. 3, 15-16).

Uma no cravo e outra na ferradura, até algum tempo vingará, mas não serve sempre, o povo em geral sabe identificar quem desse alimento se sacia diariamente, iludido que nunca sofrerá o golpe final. 

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Viver não dói

Definitivo, como tudo o que é simples. 
A nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão boa, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projecções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido juntos e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
Sofremos não porque o nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque a nossa mãe é impaciente connosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela as nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque o nosso club perdeu, mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso: «Se iludindo menos e vivendo mais!!!»
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca quando, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Contra a orfandade virá o defensor

Comentário à missa do domingo VI Páscoa...
Jose Pagano.
Título desta obra:
A luz do espírito Santo invade a nossa casa.
 A pintura simboliza a esperança,
diante da pobreza da comunidade.
1. A Palavra de Deus do VI Domingo da Páscoa proclama a entronização de Jesus como Messias e Salvador. A entronização não assinala o fim, mas o início do reinado: Jesus inaugura, pois, uma nova presença, plena, eficaz e salvífica, no meio dos homens e mulheres de cada tempo histórico. Porém, o mais interessante desta mensagem radica no facto de nos apontar para uma nova etapa no processo da salvação de Deus. Jesus vendo que está para breve a Sua partida, propõe um novo caminho, orientado pelo «Defensor», «o Espírito da verdade». De acordo com este caminho São Paulo afirma: «Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens» (1Cor 15, 19).
2. Jesus aponta uma realidade para que a nossa fé não radique só e unicamente naquilo que somos e queremos para esta vida, mas vá muito mais além. Esta ideia do Defensor «o Espírito da verdade», é muito bonita e encoraja-nos a acreditarmos na vida presente e na vida futura. Nada nos deve derrotar ou fazer temer, o nosso Defensor nos guardará de todos os males. E tomando as palavras de São Paulo, descobrimos que essa vida futura não foi só para Jesus Cristo, mas para todos os crentes. Ora vejamos: «Se com Ele morremos, com Ele viveremos; se com Ele sofremos, com Ele reinaremos» (2Tm 2, 11-12). Nesta palavra descobrimos o sentido para esta vida terrena e uma resposta para a inquietação da realidade «invisível» (palavra utilizada por São Paulo) depois da morte.
3. Jesus revela-nos a verdadeira palavra, a Palavra de Deus, e com ela somos convocados para o acolhimento do Espírito Santo. Este é o único Espírito que salva e que pode dar garantias de futuro. Nada nos deve demover desta causa. O Espírito de Deus é um caminho de salvação que nos garante uma possibilidade de graça salvadora. Nada nem ninguém nos pode contrariar nem desviar desta luz de amor revelada por Jesus. Em nós o Defensor quebrou as correntes da divisão, o ódio, a violência, os rancores, os amuos que provocam tristeza e inimizade, a falta de abertura para o perdão, a teimosia, a intolerância e o racismo nas religiões e nas comunidades humanas. O Espírito da verdade liberta-nos para a luz da vida cheia de paz e do amor que Deus semeia no coração de todos. Cabe-nos fazer germinar em cada canto da vida a beleza dessa realidade. 

terça-feira, 16 de maio de 2017

DEUS E EU!

André Escórcio esta semana em exclusivo para os leitores do Banquete da Palavra... Entre tantas coisas, foi professor, jornalista, deputado e, mais do que tudo, um amigo inquieto com o mundo, especialmente, com a nossa terra e naquilo que é o mais importante para o seu futuro, a educação/a escola dos mais novos... Obrigado amigo pela sua transparência e testemunho
Eu, leigo me confesso. Não sou e nunca fui dado a rituais. Cansa-me a repetição, a ausência de inovação, porque me desvia do fundamental. Recebi o baptismo, transmitiram-me e liguei-me à Mensagem da Palavra que fala, entre outros, de amor, tolerância e solidariedade. Daí que, nas raízes do meu pensamento, esteja sempre a vida e os outros, tendo por elemento central a pergunta: se sou feliz, por que razão os outros não o deverão ser? A resposta não a encontro nos simbolismos para a qual a Igreja empurra, tampouco em uma fé desprovida de sentido ou em uma caridade que eterniza a vida dos que vivem na margem. Não significa isto o meu total abandono pelos cerimoniais, mas a profunda convicção que a Palavra, aquela que me transmitiram e que julgo ter sabido cruzar com as múltiplas circunstâncias da vida, aquela que me fez moldar a personalidade e sobretudo o carácter. Cristo apresenta-se aos meus olhos de espectador, observador e actor, como o portador do estandarte, o Homem referência que luta contra as vicissitudes e contra os desequilíbrios sociais. Cristo é muito mais que a Igreja Católica, burocrática, conservadora, ostentatória e com muitos preocupantes escândalos de permeio. Jesus Cristo é muito mais que o Estado do Vaticano e as suas secretarias de Estado (!). Cristo é muito mais que rezas, pecados, confissões, dogmas e sucessivos batimentos no peito em sinal de arrependimento. Depois, Jesus Cristo não pede sofrimento para a libertação, pede amor e honestidade aos Homens. Portanto, Cristo é a Palavra, cuja narrativa visa humanizar comportamentos e atitudes a todos os níveis e escalas. Só que, muitas vezes, interrogo-me, por onde andará, porque tão distraído me parece, face a tanto atropelo, maldade, terror, fome, miséria e ausência de compaixão. Ele que transborda amor e que manda rebentar as amarras, como permite os poderes, todos os poderes, que colocam o homem contra o homem? Acabo por me guiar nas profundas convicções que a Mensagem traduz, interferindo onde posso e devo, na certeza que contribuo para uma sociedade melhor. Sinto isso ao fazer, com regularidade, a pergunta: cumpriste?
Esta é, no essencial, a minha relação com Deus. A do leigo que acredita na utopia como um caminho para a consecução da fraternidade entre os Homens.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

O Salvador Sobral amou pelo mundo inteiro

1. Para além de todos os acontecimentos deste fim de semana quer religiosos quer desportivos, a grande surpresa e o acontecimento mais desconcertante de todos, chama-se Salvador Sobral. Um jovem que inspira e expira música, porque a «música não pode ser fogo de artifício», mas puro «sentimento». Ganhou o Festival da Eurovisão 2017 para Portugal. Gravo. Parabéns, Salvador...
 
2. Aquele jeito meio desengonçado em corpo franzino e frágil a interpretar a música «amar pelos dois», é bem revelador do despojamento e da simplicidade que o Salvador anuncia. Melhor é impossível.
3. Desde a primeira vez que ouvi o Salvador Sobral a cantar a canção vencedora,  acompanhei-o com muito interesse, mas em silêncio. Procurei não me manifestar até ver onde ele chegaria. Não deixei de ler e escutar os enormes elogios que foram surgindo, especialmente, as vozes consagradas do campo da música. Mas, não deixei também de ir lendo e escutando vozes carregada de inveja, derrotistas e maldosas a menosprezar o rapaz e a desclassificar a sua música e interpretação, ao ponto de vir a lume alguns aspetos da sua vida privada. É sempre a mesma coisa. Uma vez manchada a pessoa, a mancha acompanha-a para sempre, mesmo que se redima ou se reintegre na vida. Muito mau este elemento e bem revelador da sociedade maldosa em que vivemos. Porém, comovei-me a recepção aos irmãos Sobral no aeroporto de Lisboa.
4. O Salvador Sobral e a sua irmã Luísa Sobral deram uma grande lição ao mundo da música, que facilmente se verga a estereótipos mercantilistas, sem conteúdo, ruidosos e vistosos. Também há uma grande lição aos canais de televisão que não se cuidam nada em apresentar o pior que existe na música nos longos programas das manhãs e das tardes. Mas a lição também foi dada ao público em geral que se abana e contorce facilmente, levantando braços e cabeça perante o oceano imenso da pimbalhada em que converteram a música ligeira portuguesa. Em geral a lição encaixa que nem uma luva em tudo o que neste país e na Eurovisão tem sido mediocridade e vontade de dominar as coisas com falcatruas ou manobras sorrateiras, que envergonhavam a verdadeira música.
5. O Salvador Sobral merecia vencer e venceu claramente, mostrando que realmente a música é essa linguagem universal, que quando bem cantada, com «sentimento», como diz o Salvador, vence todas as «torres de babel» que este mundo levanta por todo o lado, para fazer valer com isso, a exclusão da seriedade, da simplicidade e da humildade. Estes valores, que fazem as pessoas que os assumem serem verdadeiramente grandes e pelo que se vê afinal são reconhecidos. Nunca tinha me emocionado e vertido lágrimas nos poucos festivais da Eurovisão que acompanhei, mas neste graças ao Salvador, chorei emocionado com a sua interpretação, com a sustentável leveza da música, com a mensagem da letra e com as palavras finais do Salvador, onde demonstrou que em tudo o que se faz na vida sabe bem relativizar e avançar com a mesma alegria, tenhamos sucesso ou insucesso. Grandes lições de vida nos trouxe este fim de semana.

sábado, 13 de maio de 2017

O que nunca dirão os discursos oficiais ao Papa Francisco (4)

Termina hoje a nossa incursão sobre as mensagens oficiosas que nunca chegarão ao conhecimento do Papa Francisco...
1. Gosto de apreciar Nossa Senhora como a Mãe de Jesus, a mulher de Nazaré que mais tarde se junta aos Apóstolos para acolher o tsunami que representou a chegado do Espírito Santo, depois da Ressurreição de Jesus Cristo. Gosto de ver a mulher de Nazaré, aquela que questiona o anjo: «Como será isso se não conheço homem?» (Lc 1, 34). Gosto daquela que se liberta das lides quotidianas de Nazaré e foi apressadamente às terras montanhosas da Judeia, à vila onde Zacarias morava, para visitar Isabel. Gosto ao contrário da imagem de Fátima, da mulher de Nazaré que canta o Magnificat, onde está dito com toda a força e coragem, tudo o que Deus fez e vai fazer, segue-se a oração de Maria:

A minha alma glorifica o Senhor *
E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.

Porque pôs os olhos na humildade da sua Serva: *

De hoje em diante me chamarão bem aventurada todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas: *
Santo é o seu nome.

A sua misericórdia se estende de geração em geração *
Sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço *
E dispersou os soberbos.

Derrubou os poderosos de seus tronos *
E exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens *
E aos ricos despediu de mãos vazias.

Acolheu a Israel, seu servo, *
Lembrado da sua misericórdia,
Como tinha prometido a nossos pais, *
A Abraão e à sua descendência para sempre.

2. O que se diz ou prega sobre Maria de Nazaré reveste-se de uma desumanidade impressionante. A iconografia mariana é disso um exemplo. As imagens que se contemplam de Maria de Nazaré revelam uma mulher assexuada, nada próxima da condição do ser mulher. Um rosto sempre tristonho, cabisbaixo e de mãos sempre voltadas para o céu como se o inferno estivesse aí junto aos pés. Esta visão do ser mulher em nada tem que ver com a condição feminina e não espelha a dignidade que esta condição expressa de riqueza e diversidade. A feminilidade ainda continua a ser um perigo para as igrejas profundamente masculinizadas que a tradição máscula arquitetou baseada na imbecilidade de se dizer que é a vontade de Deus. A divinização de tais argumentos é um sacrilégio e uma ofensa ao Deus da universalidade bem patente no Evangelho da Cananeia e no diálogo extraordinário de Jesus com a Samaritana junto ao poço de Jacob. 

3. Maria de Nazaré, antes de ser Mãe, é a Serva de Deus, que participa do plano libertador que Deus quer levar adiante a favor da humanidade inteira. É Ela que se levanta como profeta ou discípula ou apostola para dizer «NÃO» a tudo o que se opõe a esse plano libertador de Deus. O Seu «SIM» não é uma manifestação submissa, mas compromisso ativo, militante nessa obra de Deus. Ela é a Maria do povo, um povo concreto, a mulher do nosso chão, a companheira que faz caminho connosco nas veredas deste mundo e que em cada esquina nos toca com o Seu abraço de amor. O Evangelho prova-nos que esta mulher é a Maria pobre, que vem do meio do povo, da aldeia, da cidade… Ora integrada no sangue que escorre nas encruzilhadas dos caminhos ora desprezada por ser mulher e por manifestar a diferença, exatamente, como acontece ainda hoje a qualquer mulher que assuma ativamente a sua condição feminina e que se preze porque quer ser diferente do status machista que a sociedade convencionou.

4. No canto de Maria «Magnificat», acolhemos Maria como a mulher pobre vergada ao carinho dos pobres desta vida, que procuram Deus e gritam por justiça. É desta mulher que se aprende o que é a fé, a escuta, a reflexão e a capacidade de decidir, mesmo que muitas vezes a compreensão das coisas não seja assim tão clara e tão óbvia como Ela desejaria. Assim, mais valia para uma humanidade mais justa, fraterna e amiga dentro das igrejas cristãs se Maria de Nazaré fosse olhada como a discípula ou a apostola, que Jesus como Mãe relativiza frequentemente em muitos momentos do Evangelho. Por isso, Maria não se valeu da sua condição de Mãe para contrariar o Filho e fez-se discípula.

5. As bebedeiras religiosas são perigosas. Muito bem andaríamos se esta correria religiosa representasse mais humanidade, mais fraternidade nas comunidades e sociedades portuguesas, que fossem exemplares para o mundo. Também seria bom que representasse mais honestidade em todos os quadrantes. 
O país católico vê-se frequentemente a braços com antros de corrupção que violentam o bem comum e desgraçam o nosso povo em geral, há uma impaciência geral que quotidianamente gera violência, desrespeito pelos semelhantes e pelos seus bens, a falta de civismo e má educação pela natureza e pelos caminhos que são de todos está aí diante dos nosso olhos todos os dias. Há uma panóplia de coisas que deviam deixar de existir se os picos religiosos fossem sérios e representassem depois consequências melhores para o bem de todos, no domínio da solidariedade, da amizade e na luta contra a pobreza. 
Não devem ser poucos os que andam neste país a roubar tudo quanto podem, são violentos, corruptos, pedófilos, violadores e depois vão aos santuários acender velas à Virgem Maria… Os pontos seguintes são alguns exemplos do que anda mal e que deviam estar melhores, se os picos de religiosidade geral fossem mesmo levados a sério.   
  
6. O nosso sistema de saúde anda pelas ruas da amargura. Os cuidados de saúde estão numa penúria confrangedora. Será que esta onda gigante de devotos está consciente destes problemas? - Ora se está! Até reza isso... Provavelmente, revolta-se entre portas e nas esquinas das ruas escondidos para que só eles próprios oiçam o seu maldizer, a sua pequena rede, os muito próximos da sua relação humana.
Neste domínio da saúde ouve-se falar de exemplos esporádicos que nos merecem apreço de grandes profissionais ligados à saúde. Mas ouve-se falar de irresponsabilidade, desorganização, má gestão e falta de dinheiro para o que é necessário ao trabalho dos agentes da saúde para que os nossos hospitais deixem de ser antecâmaras da morte anunciada.
Não é raro saber-se que muitos doentes entram com uma doença e saem para o cemitério com outra contraída dentro do hospital, que resulta da escassez de materiais necessários às desinfeções e aos cuidados básicos para curar as doenças. Não há verba, como se convencionou rematar a partir da famigerada crise, para justificar a injustiça, a desordem e o muito desleixo.

7. A nossa educação também está como está. Os professores andam em pânico por causa da violência e do mau comportamento dos alunos. Há crianças que chegam à escola com fome. Mas não falta dinheiro para a mesma clientela e para alimentar os famosos vícios adquiridos. Ao pé de Maria não oiço ninguém rezar e muito menos pregar isso.

8. Ainda há desemprego elevado, o que vai gerando uma rede de pobreza cujo número de pobres só Deus sabe, porque aos governantes o flagelo da pobreza pouco ou nada interessa. E aos devotos parece que nada disso conta nas piedosas intenções nas contas do rosário.

9. Vamos ao ambiente de violência em que vivemos todos os dias. Todo este ambiente de desemprego e de pobreza estão a criar homens, mulheres, jovens e crianças cada vez mais violentos, desocupados, sem perspetivas de futuro, desorientados sem valores, que se apresentam agressivos, desordeiros e cheios de desrespeito por si próprios, pelos outros e pela natureza. Basta dar uma volta pelas nossas cidades ao cair da noite para nos apercebermos a olho nu como a prostituição de rua está a crescer enormemente.
A violência doméstica vai revelando o descalabro da educação no desarranjo familiar, a ganância pelas miseráveis pensões dos idosos vai semeando o medo, a insegurança nesta porção enorme da nossa população. Houve-se falar de graves maus tratos contra idosos indefesos e desprotegidos à mão de familiares sem escrúpulos que não se inibem de cometer atrocidades contra os seus entes fragilizados pelo peso da idade.

10. E por ter falado na rua, lembrei-me que andam a vaguear nas nossas cidades pessoas sem abrigo, embriagadas e maltrapilhas. Esta grande vergonha de um país que se gaba de ser turístico, asseado e todo a Católico, permite-se ter cidadãos a vaguear nas suas artérias ao deus dará. Um escândalo que nos devia envergonhar a todos. Passam fome e tremem de frio sobre as pedras nos recantos da rua. A verdadeira devoção a Nossa Senhora devia impelir os devotos ao cuidado daqueles que estão excluídos e que caíram na desgraça. A religiosidade ou tem prática, obras, ação ou então não serve para nada.

11. No livro belíssimo do Papa Francisco, «O nome de Deus é misericórdia». Aqui está reafirmado pelo Papa que «pensando no testemunho dos papas que me precederam, e pensando na Igreja como um hospital de campanha, onde se curam prioritariamente as feridas mais graves. Uma Igreja que aquece o coração das pessoas com a proximidade» (pág. 25). Ah pois os problemas são tantos e tudo se mantém na mesma, um sossego pouco desassossegado. Por aqui se vê que enquanto andarmos perdidos, «bêbados» com excessiva religião popular, porque mobiliza multidões, não restará tempo para escutar o Mestre, exatamente, como manda claramente Maria de Nazaré, a Mãe de Jesus.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O que nunca dirão os discursos oficiais ao Papa Francisco (3)

1. Para hoje reservei a hipocrisia e o oportunismo político abençoado pela mais alta hierarquia da Igreja Católica Portuguesa (embora disfarce), para pensarmos neste humilde banquete que nunca chegará ao Papa Francisco por nenhuma via nem muito menos por aqueles sortudos que irão falar com ele nestas horas de visita ao Santuário de Fátima.

2. Veio a tolerância de ponto. Está mais que evidente o aproveitamento político e sendo o governo de esquerda, devia mostrar a sua coerência e a sua defesa intransigente da laicidade do Estado. Essa coerência do Estado laico deve existir em todos os momentos. E ponto final. Mas sendo declarada por uma razão qualquer deve contemplar todos os portugueses, tanto no continente como nas ilhas. Por isso, devia ser para todo o país, ao contrário daquilo que defendeu o Presidente do Governo Regional da Madeira, que invocou a não «continuidade territorial» para não declarar na Madeira a tolerância de ponto. Não há, não pode haver, portugueses de primeira e portugueses de segunda. Não é assim que está consagrado na Constituição Portuguesa e no Estatuto Político da Madeira? - Mas, a partidarite não raras vezes reveste-se da mais sentida devoção religiosa para fazer vingar os seus intentos.
Seguindo ainda mais de perto estas reviravoltas partidárias, temos três concelhos na Madeira com tolerância de ponto para os seus funcionários para verem o Papa: Funchal, Porto Moniz e Porto Santo. Ah… Já me esquecia, a Universidade da Madeira também alinha na tolerância de ponto. Melhor é impossível…

3. Mais interessante ainda foi o «carnaval» na Assembleia Regional da Madeira. Disseram as notícias que o PSD e o CDS apresentaram, no parlamento regional, dois votos de congratulação pelo centenário das aparições em Fátima e pela visita do Papa Francisco a Portugal, justificados pela «devoção» dos madeirenses. O CDS, através do deputado Rui Barreto, voltou a desafiar o governo regional a conceder tolerância de ponto aos funcionários públicos, na sexta-feira.
O partido JPP e o PS associaram-se aos votos, recordando a tradição católica de Portugal e o PCP compreende a intenção das propostas que, segundo o deputado Edgar Silva, não se centram nas aparições mas na visita do papa.
As críticas mais fortes vieram do BE e do deputado Gil Canha que votaram contra. O deputado independente defendeu o respeito pela separação entre o Estado e a Igreja e acusou os dois partidos proponentes de aproveitamento grosseiro da visita papal. Cá nada! Será até caso para adivinhar um forte arrependimento de um líder partidário e Presidente de Governo Regional arrependido pelo imbróglio que criou com aquela justificação atabalhoada da «continuidade territorial» para não conceder tolerância de ponto na Madeira no dia 12 de maio de 2017.
O deputado Rodrigo Trancoso, do BE, considerou «ridículos» os dois votos de congratulação e lembrou o contexto em que se verificaram as aparições de Fátima, em 1917, que considerou serem um «grande embuste».
O mais famoso e truculento deputado da Assembleia Regional da Madeira, José Manuel Coelho, do PTP, fazendo uma incursão bíblica protestou por serem dois partidos «fariseus», PSD e CDS, a propor estes votos. Espetacular. Melhor é impossível…

4. Por fim, destaque-se a santa aliança política nesta matéria entre Presidência da República, Governação do país e a hierarquia da Igreja Católica em Portugal. Todos juntinhos nesta causa, mesmo que esta comunhão faça surgir leituras pouco abonatórias para ambas as partes.
Neste âmbito não quero deixar passar em branco a «conversão» do Partido Comunista Português. Foi enternecedor ler o seu comunicado de imprensa, onde o Partido Comunista Português (PCP) afirmou a sua posição em relação à visita do Papa Francisco a Portugal.
O PCP reafirma a sua posição a princípio de respeito e defesa da liberdade de consciência, de religião e de culto. «Trata-se de uma conquista de abril e de uma exigência constitucional, pela qual lutámos», diz o documento.
Mas relembrou que muitos dos seus militantes são católicos e crentes, havendo dentro do Partido um respeito pelas «múltiplas expressões e manifestações de religiosidade». A relação da Igreja Católica com o PCP é descrita como um «normal relacionamento institucional», que deve ser respeitado, assim como a visita do Papa, «acolhida com a consideração devida» pelo seu carácter religioso. Só faltou dizer que «rezava» pelo sucesso da peregrinação a Fátima do Papa.

5. Estas peripécias em nome da peregrinação do Papa Francisco e dos 100 anos da história da Cova da Iria, nada se coaduna com a simplicidade e proximidade deste Papa, que nem por sombra deve sonhar com estas cambalhotas e que muito deviam envergonhar-nos, não fossem tão cheias de graça.