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Convite a quem nos visita

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A palavra e a carne

Há uma fome que me consome a alma. Uma fome de ouvir discursos com gente dentro, com carne deste tempo que é o nosso tempo. Obviamente, que escapam alguns discursos que me oferecem um prato ou outro bem recheado de mensagem e de verdadeira comunicação.

Não sei o que pensa a maioria das pessoas que estão a ler este meu escrito em forma de desabafo.

Há uma coisa curiosa. Dos discursos políticos dos últimos dias, alguns que apreciei na apresentação dos respectivos executivos vencedores das últimas eleições autárquicas, reparei com agrado, que metem gente, que têm carne, resumindo-os a uma legítima reivindicação, o cumprimento das promessas. Todos têm este mote quanto ao reivindicam, o bem do povo e a melhoria das suas condições de vida no espaço geográfico das competências dos executivos apresentados para governar. Fiquei agrado, embora não me iluda muito quanto ao futuro, e tenho já a certeza, que muita coisa vai ser feita, mas outra grande parte cairá no rol do esquecimento. Tudo normal. Importa agora relevar que todos encheram os seus textos com gente, com povo, com carne humana viva.

Noutro âmbito, no geral os discursos que se ouvem de teor religioso, deixam-nos cheios de fome. Não há carne dentro, não têm povo e muito menos dão uma linha que seja estratégica de acção que desperte para a criatividade, a ousadia e a livre expressão das capacidades de cada pessoa. É uma dor de alma ouvir discursos vazios, herméticos e recheados de conceitos anacrónicos desfasados da realidade. Uma fome que gera ainda mais fome. Nisto vivemos numa pobreza tremenda e não parece haver maneira de dar a volta a isto nos próximos tempos.

Este é o tempo que exige mensagens claras. Não deviam faltar palavras ousadas de apoio, de incentivo, de denúncia corajosa, de verdade, de alegria, de esperança… Palavras da vida que fossem geradoras de mais vida.

Tenho fome de uma comunicação acutilante, concreta, proclamada com entusiasmo que fizesse vibrar as pedras das paredes dos edifícios centenários e que nos enchessem o espírito de verdadeiro alimento para continuar a existência com o ânimo carregado, para vencer a depressão desta fome que nos consome a alma.

Os pratos da comunicação hoje, na generalidade, trazem-nos ingredientes com os mesmos temperos, com os tamanhos estandardizados e estereotipados. Estamos dominados de discursos cheios de ambiguidades, que parecem afirmar muita coisa, mas no fundo dizem nada, são portas que dão para paredes emparelhadas umas atrás das outras, totalmente opacas, dentro de espaços completamente manipulados e blindados.

Livrem-nos desta fome tenebrosa que que nos assiste, tão manipuladora que infantiliza, porque é contra a força edificante do espírito que comanda os tempos e a existência dos povos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Aquilo em que acredito

 As relíquias não podem e não deve ser justificada a sua devoção sob o ponto de vista da fé. Mas já que não encontraram outra forma mais convincente para justificar a visita das relíquias de São Tiago Menor ao Funchal, vamos então falar de fé e relíquias. Embora, fé e relíquias soam tão mal, porque a fé nunca pode estar associada a relíquias, que nos lembra logo ser apenas e só coisa do passado, por isso, a fé terá de ser sempre realidade nova sobre pessoas, ideias e valores em que se acredita. No caso, a pessoa de Jesus Cristo e o Evangelho. 

Assim sendo, lembrei-me de uma história dos anos vinte antes de Cristo de certo gentio que se aproximou do famoso rabi Schammai com esta proposta: «Metre, estou disposto a converter-me ao Judaísmo se me explicares a tua religião durante o tempo em que se pode ficar apoiado só num pé». O rabi deu voltas e mais voltas à cabeça e o cérebro mostrou-lhe as intermináveis interpretações de tantos séculos sobre os textos da Tora necessárias à salvação. O rabi reconheceu que era impossível resumir tudo o que se relacionava com a Lei da religião judaica em tão pouco tempo.

O gentio não se deteve e manteve o seu desejo de se converter. Foi com Hillel, outro rabi muito famoso da daquela época a quem lançou o mesmo desafio. Hillel não podia ser mais categórico: «Tudo o que te parece mau para ti, não faças aos outros, aqui está toda a Tora (Lei). Tudo o resto não passa de comentários. Vai e aprende».

Tempos mais tarde esta história voltou a acontecer, não com um gentio, mas um judeu, doutor da Lei, um perito na interpretação dos textos bíblicos. A pergunta foi dirigida a Jesus que não tinha frequentado nenhuma escola, mas que se atrevia a fazer ousadas tiradas na disputa/conflito das interpretações: «qual é o mais importante de todos os mandamentos?» Jesus respondeu de forma mais positiva que Hillel: «Ama o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças, o segundo mandamento é este: «Ama o teu próximo como a ti mesmo». Diz-nos São Marcos, que o doutor da Lei ficou espantado e satisfeito com a resposta (Mc 12, 28-32).

Estas evocações que fiz servem para nos centrar no essencial. A fé só tem um único alvo, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Tudo o que daí advém resulta de interpretações que podem edificar a fé como a podem anular completamente. Normalmente pervertem mais do que edificam.

Eu compreendo o esforço que se anda a fazer para justificar e valorizar umas relíquias de São Tiago Menor, um pedaço de osso, disseram, vindo diretamente do centro da cristandade, Roma, como se isso fosse de imediato razão suficiente para não se questionar nada e para aceitar sem pestanejar sob a capa da fé.

Não é aceitável que nos tempos de hoje se pegue em relíquias dos santos para se catalogar os cristãos. Os que as aceitam e que diante delas ajoelham, são os crentes, os salvos, os outros que as questionam, são os perdidos sem fé, os reles descrentes. Este maniqueísmo é absurdo, quando se trata de um acessório e não daquele centro onde gravita a dimensão da fé e da verdadeira espiritualidade.

Digam o que disserem, mas os tempos que vivemos não estão virados para esta forma eufemisticamente designada de «evangelização». Também não será por esta via que se vai cimentar a tão propalada comunhão e união, quando em muitas outras questões fundamentais da vida há atentados grosseiros que impedem uma autêntica convergência de ideais.

A fé não pode ser um capacete que serve para tudo, muito menos deve ser argumento fácil para rebater aquilo que nos incomoda e que nos contraria. Não será de ter em conta que esquartejar corpos para veneração e adoração tão unanimemente aceite nos tempos medievais, hoje nos soe a morbidez? – Eu penso que sim. E continuarei a não crer nisso, mesmo que seja excomungado ou queimado vivo na Praça do Município.

Aquilo em que acredito remete-me a um passado, como é óbvio, mas não me situa no passado nem muito menos me faz viver como se estivesse presencialmente nesse passado. Por isso, aprendi do pensador Jean Dausset: «Todo o novo conhecimento é uma libertação e (que) a ignorância é a maior das escravaturas. Não se pode, não se deve parar a marcha da ciência. Se a humanidade se cansar no caminho da descoberta voltará às trevas». O Cardeal Tolentino Mendonça no livro «Uma beleza que nos pertence» define a fé desta forma: «A fé é uma história de fidelidade que se constrói, não é o mero entusiasmo de um momento».

Malogradamente, temos vivido assim com «fogachos de fé» como os picos do coração. Só para nomear alguns: eles foram os 500 anos da Diocese do Funchal, as duas visitas da Imagem Peregrina de Fátima e agora os 500 anos do Voto a São Tiago Menor, a par da visita das suas relíquias vindas desse lugar «exemplar da fé» que é o centro da cristandade. A visita de tão extraordinária divindade vai animar isto até ao final do ano.

É preciso cuidar que muito daquilo que se anda a pregar como expressão da fé e sobretudo o esforço que se faz para canalizar a fé para objetos, pessoas, ideias, pode resultar em pura idolatria e ideologia. Daí que não deve ser de somenos escutar as palavras do Cardeal Mendonça no livro supracitado: «A fé em Deus sobrepõe-se a todas as convenções culturais e a todas as lógicas puramente humanas. A fé é essa confiança pessoal colocada em Deus e que ultrapassa tudo. Abraão ensina-nos que a fé é um modo de existir colocado diante do incompreensível desígnio de Deus, ele deixa tudo em suspenso, exceto a relação com Deus». Por isso, nada de julgamentos e deixem-me viver a minha fé como «um modo de existir» diante do mistério que nos assiste. Não me tragam mais clichés nem muito menos juízos de valor com o intuito de me converter a caprichos desfasados da realidade histórica em que vivemos.

sábado, 9 de outubro de 2021

Filme em exibição Fátima


«Fátima - A História de um Milagre», é um filme estadunidense de 2020 dirigido por Marco Pontecorvo. Está em exibição nos cinemas. É um filme fraco. Não há novidade nenhuma na história que conta.

No entanto, mais uma vez serve filme para denunciar o estado da sociedade portuguesa da primeira metade do séc. XX. Uma sociedade caracterizada essencialmente pela pobreza extrema, o analfabetismo dominante e completamente mergulhada numa religião infantil, cuja catequese se imponha pelo medo do diabo e do inferno. A submissão ao moralismo doentio fazia o seu caminho.

Pensei que o filme se desbobinaria à volta do interessante diálogo entre a Irmã Lúcia (atriz brasileira Sónia Braga) e o professor, estudioso do fenómeno de Fátima, no convento de Coimbra onde estive muitos anos a Irmã Lúcia na Clausura. No primeiro diálogo, Lúcia, confessa ter lido os vários estudos do professor, que concordava com muitas coisas do que ele dizia, outras não, mas que apreciava muito as opiniões contrárias à sua.

O desenrolar da história do filme interrompe-se, volta e meia, para ir ao diálogo entre os dois. Aqui percebermos que estamos perante duas pessoas inteligentes, onde transparece a crente e o descrente. O diálogo anda à volta do testemunho da Irmã Lúcia sobre os acontecimentos de Fátima. O professor que recolhe elementos para o livro que pretende escrever sobre Fátima, faz perguntas e remata provocações que desafiam as certezas de Lúcia. Lúcia dá conta das suas certezas, é certo, mas não esconde as suas dúvidas e dá laconicamente conta delas.

A Frase final de Albert Einstein, ilustra bem toda a mensagem do filme e onde pretendia chegar o realizador, Marco Pontecorvo: «Há duas formas para viver a sua vida. Uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre».