1934-2010 Zilda Arns
O discurso, escrito em espanhol, nunca chegou a ser proferido. Zilda Arns morreu antes, no terramoto que atingiu o Haiti, nos escombros de uma igreja em Port au Prince onde faria a palestra. Morreu em missão, fazendo o que gostava, defendendo o direito à vida e à dignidade humana.
Eram estas algumas das suas palavras pensadas para o dia 13 de Janeiro: "A paz é uma conquista colectiva. E tem lugar quando impulsionamos as pessoas, quando promovemos valores culturais e éticos, as atitudes e práticas que buscam o bem comum, que aprendemos com o Mestre Jesus: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância." (Jn 10,10).
Zilda era uma mulher grande, altiva, generosa. Acostumou-se a pisar a lama das periferias, a enfrentar o sol inclemente do sertão, a caminhar por favelas violentas, sempre com um sorriso largo no rosto e uma alegria contagiante. Levava aos mais pobres um bem capaz de mudar os seus destinos: a educação.
"Por trás das nuvens há sempre o sol", costumava repetir aos que insistiam em ver apenas a miséria e a desesperança.
Zilda Arns Neumann nasceu em 1934, em Santa Catarina, estado do Sul do Brasil, numa região de imigrantes alemães. Irmã de dois padres e três freiras, nunca quis ser religiosa, mas desde muito cedo acalentou o sonho de se tornar missionária católica. Escolheu a Medicina, aos 15 anos, como instrumento da missão a que se propôs. Porém, foi só depois de criar cinco filhos e enviuvar que Zilda começou a realizar o seu sonho de adolescência.
"Deus deu uma volta enorme, mas estou chegando lá", declarou em 1999, ao relembrar os anos dedicados à família, antes de poder lançar-se integralmente nas acções missionárias.
A grande obra de Zilda Arns começou a nascer em 1982, em Genebra, na Suíça, num encontro informal entre o então secretário executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), James Grant, e o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, irmão da médica. O representante da Unicef sugeriu a D. Paulo que a Igreja desenvolvesse acções para reverter a situação de miséria e de mortalidade infantil no Brasil.
No regresso da viagem, D. Paulo apresentou o desafio à irmã Zilda. Ela elaborou o projecto que, em 1983, se transformou na Pastoral da Criança, estando ela própria à frente de um batalhão de voluntários. O grande objectivo era ensinar às mães pobres como cuidar de seus filhos, com lições básicas de saúde e nutrição: não deixar de vacinar as crianças contra doenças como o tétano e a difteria; ferver a água antes de bebê-la; dar vários banhos frios aos mais pequenos em dias muito quentes; acrescentar uma colher de uma mistura de farelos e grãos aos alimentos para combater a desnutrição. Ensinamentos simples, que poderiam significar a diferença entre a vida e a morte. Mas a grande revolução era o soro caseiro: a mistura simples de água, sal e açúcar, que salvou milhares de crianças, vítimas de diarreia e desidratação.
Zilda levou a primeira acção da Pastoral da Criança à cidade de Florestópolis, no Paraná, onde o índice de mortalidade infantil, na época, era de 127 mortes em cada mil crianças nascidas vivas. Após um ano de acção solidária da Pastoral, o índice recuou para 28 mortes por mil nascimentos. O sucesso incentivou a Igreja Católica a expandir a Pastoral da Criança para todos os estados do país.
Em 2001, a Pastoral da Criança registou uma taxa de mortalidade infantil, nas comunidades onde actua, inferior a 13 mortes para cada mil crianças. Uma resultado surpreendente, considerando que a média nacional de mortalidade infantil era de 34,6 óbitos, segundo a Unicef.
Zilda Arns creditava o sucesso da Pastoral da Criança a milhares de voluntários, que levam adiante as acções de educação, saúde e cidadania a mais de 32 mil comunidades em bolsas de pobreza. Dizia que nem sempre é preciso um médico para garantir a saúde de um povo, à medida que as famílias ganham autonomia e aprendem a prevenir as doenças. A fórmula sempre foi usar a simplicidade para multiplicar o saber.
Cantando o soro
Zilda Arns multiplicou o seu saber pelo mundo. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Filipinas, Paraguai, Peru, Bolívia, Venezuela, Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai, Equador e México são apenas alguns países onde a Pastoral foi implantada com sucesso. A própria médica ministrava os cursos e ajudava pessoalmente a estruturar as acções, unindo credos e raças.
Na Guiné-Bissau, de maioria islâmica, Zilda Arns comoveu-se ao ver líderes muçulmanos envolvidos no projecto, cantando à maneira deles a receita do soro caseiro, que salvou milhares de crianças da desidratação. Em Angola, começou o trabalho, em 1987, com apenas 17 mulheres voluntárias. Hoje, só no Porto do Lobito, de onde eram enviados escravos para o Brasil, existem mais de 800 líderes comunitários trabalhando com crianças e grávidas pobres. Depois de 25 anos de guerra civil, Angola não tinha sequer recolha de lixo, e a Pastoral da Criança dava o exemplo, separando o que poderia ser reaproveitado e ensinando a enterrar o restante. Zilda sempre fez questão de lembrar que a acção da Pastoral ia além da saúde física de crianças e grávidas. Era também missão espiritual, de paz e harmonia para famílias e povos. Por isso, levou a experiência brasileira para tantos países devastados por guerras e misérias, como Timor-Leste e Moçambique.
No dia 13, mais uma vez, ia promover a multiplicação do saber, num encontro de religiosos e leigos, num Haiti sofrido e miserável.
Por Denise Sobrinho, Rio de Janeiro, in Público 16/01/2010