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quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Renovar desejos e propósitos


No contexto de final de ano e início de novo ano, sempre nos toma um turbilhão de desejos positivos que vamos expressando uns aos outros. Algumas dessas vontades, se estão restringidas ao âmbito do foro pessoal ou familiar, também moram no nosso pensamento por estes dias.

Ando a meditar que avançamos tanto na ciência e na tecnologia. Por um lado, é tanto que nos traz o bem e nos faz bem, mas por outro, tanto nos torna frios, insensíveis, solitários, vazios e calculistas.

A este nível estaremos a falar de avanços impressionantes que marcarão o futuro da humanidade para o bem ou para o mal. Pode até ser que tais avanços sejam incontroláveis, isto é, que a humanidade passe de dominadora a dominada dentro de breve tempo. A inteligência humana associada à ciência e ao progresso tecnológico faz um caminho extraordinário que proporciona excelentes benefícios à qualidade da vida humana no Planeta. Embora, a que preço para os desequilíbrios do Planeta Terra e da biodiversidade… É um assunto que já está a ser avaliado e todos nós já estamos a sofrer as pesadas consequências dos estragos que foram feitos ao longo dos últimos anos.

Certo é que não descuramos o que é maravilhoso o avanço científico. As facilidades tecnológicas a ele associadas, idem. Mas tudo tem um preço quando feito de forma descontrolada e sob a cegueira que não há limites.

Noutro âmbito, não se desenvolveu de igual forma o bom senso e a ética. Há autores que defendem que neste domínio do bom senso e da ética, levamos 500 anos de atraso. Serão só estes 500 anos? - Provavelmente, referem-se às barbaridades políticas, sociais e religiosas de anos passados, onde predominavam as condenações à morte, as guerras sanguinárias, as decapitações, as chibatadas, lapidações, a tortura, as bruxarias e magias negras, a instrumentalização de Deus para fazer atrocidades em seu nome, as loucuras que extasiavam em nome dos deuses dos selvagens devotos que as defendiam e as explicavam sob o crivo da letra da palavra sagrada.

Olhando para esse passado onde predominou tudo isto, pensamos, que algum bom senso e ética prevaleceram e avançaram. Mas, vendo bem, pode ser que nem tanto assim, porque males semelhantes aos citados no parágrafo anterior, continuamos a assistir no nosso tempo. Hoje, malgrado continuamos com a humanidade a viver o seu melhor e o seu pior. Pois, há sempre uma parte que avança no bom senso e preocupa-se com a ética, mas outra parte em todos os cantos da sociedade continua a destilar o veneno da violência e a desejar que se cometam barbaridades contra os seus semelhantes, particularmente, os mais frágeis e indefesos. As religiões neste domínio também continuam a legitimar uma quota-parte neste campo da violência.

É tempo de renovar desejos e propósitos positivos. Os tempos são difíceis. Mas não devem faltar forças para que a par dos avanços científicos e tecnológicos, avancemos também no campo do bom senso e da ética. Pois, trata-se de salvarmos a humanidade e a nossa casa comum, o Planeta onde habituamos.

Almejamos o fim das guerras e que se abram todas as portas do diálogo fraterno para a resolução de todos os conflitos. Não ao progresso ilimitado, desregrado e sem ética. Mas sejamos todos por um desenvolvimento humano onde não deixe ninguém de fora.

Ano novo vida nova sempre se vai ouvido. Por isso, para que venham tempos de felicidade, é requerido substrato fertilizante, amassado pelas mãos bondosas de muitos homens e muitas mulheres de boa vontade. Um ano feliz para todos.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Saudação de Natal

24 de Dezembro de 2021


Vivemos como que exilados do céu

somos húmus na vertigem do sem sentido

loucos pelo possível e pelo impossível

nas malhas desta terra inconstante e sem valor

como que mortos no chão de Dezembro sem florir

é bastas vezes existência fome da serenidade do amor.

 

Assim tomados de assombro face ao Natal

Lembra-nos que é preciso retomar a luta

entre as mãos de uma mãe que amassa o terno pão

na pobreza despojada deste olhar como abrigo

nesse tempo frio onde sobrou apenas uma gruta.

 

Mais uma vez deve ser aconchegante ver

uma Sagrada Família compenetrada sobre o centro

desta visão infantil onde somos todos uma criança

abafados pelas frágeis e rudes palhas do ser.

 

Cantam anjos e pastores hossanas de alegria

a libertação do mundo veio outra vez está dito

pela forma do canto de um sonho interminável

para o mundo que teima em ser abominável

quando os dias são nada em vez do infinito.

 

Com flores, árvores e pedras o céu nas casas

é presépio iluminado momento sério sem cobiça

nasceu o Menino de Maria e do olhar de José

tanto é o respeito de ambos palavra para amar

a Boa Nova da bondade e da justiça.

 

E foi assim por piedade que o mundo viu

novos céus e nova terra para a humanidade

mais um apelo à conversão perante os gritos

pois são tantos os olhos molhados dos aflitos

silêncios cúmplices é preciso firmemente acabar

com as malditas noites e dias sucessivos.

 

Mas, eis o novo tempo que para todos prenuncia

é o sol que em ti divina conversão já floria.

É Natal! É Natal! Não seja apenas mais um dia

seja sempre vida nova. Sonho renovado do futuro

que em ti o mistério plantou como a flor numa poesia. 

JLR

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Um brinde à inexaurível fraternidade


 Crónica

10 Dezembro de 2021

O tio de cima vivia paredes meias com o tio de baixo. Estavam ligados pelo património, que herdaram da mesma casa paterna, porque não parecendo a ninguém, eram irmãos de sangue. Todos os adoptaram como tios, um de cima e outro de baixo. Algumas vezes guerreavam por causa das propriedades, das águas da rega, as galinhas que comiam as couves do terreno do outro, a cabra e os seus filhotes que se tinham soltado e lá foram à rama das batatas… Com toda a certeza que veria briga de algum lado.

A mulher do tio de cima, a Silvina, não perdoava uma que fosse. A defesa das propriedades ameaçadas do tio de baixo, era mesmo ele que vestia a toga de advogado, que em pessoa, também, não deixava por mãos alheias as suas advertências ao irmão, ralhando em altas goelas, apedrejando as atrevidas galinhas e as malditas cabras.

O tio de cima era ao contrário do irmão. Sempre pacífico nunca repostava mesmo que à vista de todos estivesse com a razão. Não se importava com os estragos, paciente como um anjo voltava a fazer sem pestanejar e tantas vezes ao arrepio da esposa, que era de língua afiada e sempre pronta para deitar da garganta para fora todo o palavreado que a alma afoita produzira. Afogava-se se não falasse.

O irmão, o de baixo, não perdoava nenhuma investida. Qualquer coisa servia para o vermos enfurecido. A sua mulher, a Maria, era uma paz de alma, dedicava-se às lides de casa e passava a maior parte do tempo a confeccionar os alimentos. Bastas vezes sentíamos o cheiro maravilhoso das semilhas a serem fritas para o jantar - lanche reforçado que era comido por volta das 16 ou 17 horas da tarde. Nada se perdia, as semilhas que tinham sobrado do almoço eram agora passadas à frigideira sobre a banha do porco, libertando um aroma raro de apetite e de prazer. Quando nos dávamos conta do cheiro, corríamos em manadas para fazer sentinela junto da porta da cozinha, um tugúrio coberto de palha, com um chão de terra batida onde poisavam panelas, taças de barro e as púcaras onde estava as carnes de vinha de alhos e a salgada da última matança do porco. A lareira estava ao centro, com um lar com dois compartimentos, onde um deles sustinha sempre uma panela com água a ferver.

A pobre mulher, a tia de baixo, já velha, um pouco quebrada para a frente, acusando o peso dos anos, vinha ao nosso encontro com as mãos cheias de talhadas de semilhas sobre uma folha de couve verde para lhe proteger as mãos da quentura e dava uma talhada bem tostada de ambos os lados a cada um de nós, com esta advertência despachante de carinho: - Agora vocês vão com a mãe!

Sem dizermos nada, obedientes, porque o marau do marido, vulgo tio de baixo, não lhe escapava nada, e nós que sabíamos muito bem dos intentos que era capaz, vínhamos contentes para casa, saboreando aquele regalo como toda a gente saboreia nos tempos de hoje um Ferrero Roché.

Já vimos que o tio de baixo facilmente sai do razoável. Mas sempre que precisa do irmão, também não se faz rogado. Admira que se um veio ao mundo para ser mais saído na conversa, na dureza com os outros, incontido na irascibilidade e nas palavras, mas não era tanto habilidoso como o irmão, o tio de cima, que era sempre muito prestável, pois era habilidoso para tantas coisas. Uma hora tirava os dentes podres das gentes contorcidas com dores fatais e insuportáveis. Noutra ocasião cortava os cabelos dos rapazes que ali apontavam com melenas a cobrir os ombros e parte das costas. Ao fim das tardes saía de casa para castrar porcos e bodes. Para tudo tinha um engenho raro que trouxe consigo do seio maternal e que fazendo bom proveito serviu a tanta gente desamparada neste mundo.

O irmão, tio de baixo, sabendo dessas habilidades todas, mesmo, por vezes, sendo tão intolerante com o irmão, não hesitava um segundo quando das suas mãos precisava.

- Olha a porca pariu onze bácoros. - Disse tio de baixo.

Levando as mãos à testa, ao peito e a cada um dos ombros, fazendo o sinal da cruz disse, tio de cima com admiração: – benza-te Deus! Rogai por nós Santo Antão! Estão todos bem?

- Sim… Há uns mais fraquinhos que outros. Mas já comecei a deitar o leite das cabras à porca para que não lhe falte leite nenhum nas tetas, para os bichos não definharem. Um dia destes passa por lá para capares os machos.

Assim, se acertou o dia. E como não podia deixar de ser, prontamente, se apresentou tio de cima para realizar a excisão dos testículos dos bácoros machos. Um a um foram passando pelas suas mãos bem presos entre as suas pernas valentes, aplicando um golpe certeiro em cada um dos lados do membro, que vertia sangue e os guinchos estridentes dos bichos subiam lombos e desciam vales pelo sítio todo. Um momento assaz cruel para os meus olhos da alma.

- É o último! - Alguém declarava.

Para finalizar vinha a tia Maria com um farnel de semilhas bem aloiradas com a banha na frigideira. Colocava a sua especialidade sobre a lenha num canto do chiqueiro, e com aquele manjar saboroso, despejavam dois jarros de vinho seco, acabadinho de tirar da pipa da última colheita. A diversão começava sem atrapalho, só e apenas a solidariedade e a entreajuda. Por mais que brigue ou se guerreie a humanidade, nunca deixará de ser consanguínea e feita de carne da mesma carne.  

Pelo menos nestas ocasiões nenhum estrago de galinhas ou de cabras que se soltavam dos currais mal-amanhados nem as trocas e baldrocas dos giros das águas de rega e muito menos as pedras que se soltavam das paredes dos poios que pisavam a colheita de um ou do outro, vieram atrapalhar o brinde à genuína fraternidade.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

De Gaulle: resistir contra ventos e marés


Nunca ceder ao ódio e muito menos à resignação.

Um nome que resta para todas as coisas e para todos os momentos da História: a resistência, mesmo que seja contra tudo e contra todos.

Foi graças à lucidez deste homem e extraordinário líder, a França, a Europa viram o curso das suas histórias seguiram o rumo da República/Democracia, que bem ou mal, podemos hoje usufruir.  

A revolução é sempre possível, mesmo que sejam só e apenas as palavras as únicas armas que restam.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Três andamentos temporais


Os assassinos do amanhã não têm medida

não dormem como dorme toda a gente

pois golpeiam a dois gumes friamente 

o que pertence ao mundo e à vida.

 

Os assassinos do hoje são uma tristeza 

não se dão conta de nenhuma flor

são mais que cegos da intensidade da cor

é perigoso não se encantar com a beleza. 

 

Os assassinos do passado não deviam contar

no rol da memória sentida do tempo que nos fez

nunca saborearam este começo "era uma vez..."

são doentes, nada deste mundo os pode curar.

JLR

sábado, 27 de novembro de 2021

Os sentimentos não são descartáveis

A nossa época é uma época triste e contraditória. Dizem-me que é o tempo dos amores líquidos, onde os sentimentos podem ser facilmente descartáveis.

O que noto antes disso é que há pessoas mergulhadas na fragilidade, inseguras, desconfiadas, ciumentas até das sombras, a beberam medos contra a proximidade dos laços, estão marcadas pelo passado que não integraram ainda nem cicatrizaram as suas chagas. As palavras que deviam expressar sentimentos, não passam de palavras iguais a palavras obscenas que se soltam em cada frase que se pronuncia. Estamos no tempo do amor e do desamar à velocidade da luz, como alguém denominou.

Neste contexto temos um leque bem variado de opções que ajudam a colmatar as solidões e as carências, Facebook, Whatsapp, Instagram, Tinder, Twitter… É triste que alguns alimentem a ingénua ilusão de descobrirem amor nestes meios, quando se sabe à partida que
aqui não existe amor nem pode pingar amor.

Mas, há uma coisa que dali se retira, que não sei se é bom ou se é mau, nada nos apega a nada, quando não está bom apaga-se, descarta-se, bloqueia-se, deleta-se... E porque é tão fácil assim, transporta-se isso para as coisas da vida, mesmo que algumas delas requeiram mais atenção, cuidado, delicadeza, porque se trata de pessoas e dos seus corações.

Porém, esquece-se que fora dos teclados e dos ecrãs, há pessoas, corações, mãos e pés, um corpo inteiro, que guarda sentimentos, sonhos, desejos e que almeja ser feliz. Pensar mil vezes nisso deveria ser ainda muito pouco, porque mantém-se a máxima do sábio rabino Hillel que ensinava, «não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti», esta é toda a Lei e os Profetas.

Para tanta gente o amor é líquido. No entanto, quero crer que nem que seja em meia dúzia de pessoas deste mundo, ele ainda é sólido, totalmente real porque se alimenta fora dos parâmetros das vias frívolas e voltáveis dos tempos da comunicação virtual.

Fica o desafio, antes de magoar um coração, pense antes dez mil vezes, que pode ser um morador dessa casa.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Casa onde há fome há fartura de tempo

A garoa cobriu a encosta por inteiro. Estava tão desagradável que não permitia sair de casa. Mesmo que várias mãos suaves e delicadas já tivessem emborcado a leiteira vezes sem conta, mas de lá de dentro não caía nada para ninguém. A fome e o tempo estavam juntos naquele dia. Quanto mais percebiam do vazio do precioso líquido mais se avolumava o retinir da tripa daquelas pobres almas que almejavam comida de qualquer maneira.

A tarde demorou a vir, mas logo depois veio a noite, prometendo ser longa e farta de fome, nada se vislumbra para comer. Em casa de pobre só o tempo é que é em abundância. Ele é mestre a fartar como nada quando se espera e desespera pelos atrasos ou atrasados, mas também é exímio a fartar quando bate as horas em cima de horas sem providência de alimento que retempere as forças e sacie o estômago, a alma.

Nisto ouviram umas batidas estridentes na porta, e todos se sobressaltaram. Num breve jogo do empurra a ver quem tomava a dianteira para destrancar a porta, calhou a tarefa a quem competia naquele dia ter ido buscar o sacrossanto líquido ao palheiro das vacas. Com a mão direita certeira e com toda a força destrancou o canhão da fechadura e com a mão esquerda puxou com violência o ferrolho que sita ao meio da porta. Entreabriu a medo uma fresta e deitou os olhos bem abertos para fora. À sua frente estava a vizinha de baixo com um farnel de semilhas e uma travessa enorme de torresmos ainda a fumegar, pois tinham saído nesse instante da panela. Logo o cheiro das semilhas cozidas e os dos torresmos inundou todos os cando daquele reduto onde se guardavam comodamente aquelas almas famintas do tempo e da preguiça.

- Ó… Divinas mãos! – Gritaram todos dentro de casa em coro, eternamente agradecidos, pela dádiva desta alma bondosa da vizinha que se lembrou de partilhar generosamente do seu alimento.

É certo que a intempérie atrapalha a vida. Mas a preguiça é sempre mais forte que tudo. Ora vejamos, que reclamava manhosamente que as ervas carregadas de pingos lhe molhavam as pernas e assim ficava doente. Por isso, ali se deixou ficar sobre o manto da preguiça deixando todos à fome, argumentando sofisticamente que o tempo rebola para baixo mais depressa do que para cima.

Não restam dúvidas, porém, para alguém que certeiramente aduziu que a vida embeleza-se com solidariedade, não olhando a nada nem a quem, e doutro modo, se o trabalho desse dinheiro, todos os pobres seriam ricos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Em que nos tornamos por este andar?



Em 2003 lancei o meu primeiro livro de poemas, «Regresso ao Mar». Foi um primeiro sinal poético, que perpassa vários momentos de interioridade e de reflexão. Como não podia deixar de ser, ainda marcadamente imaturos alguns dos textos que então escrevi. Porém, estava despido de qualquer pretensão e não pedi nada a ninguém. Só pedi ao meu grande amigo José António Gonçalves (ele sim, um dos maiores poetas da nossa terra), que me honrou com um texto belíssimo na apresentação do livro. Ainda guardo esta reflexão tão generosa como uma das melhores recordações da minha vida.

Este livrinho inaugural foi uma pequena compilação de textos que expressam o sentir do autor, da sua visão do mundo naquele tempo, da existência que despontava cheia de sonhos e de ideais. Naturalmente, que vinha ao som do marulhar de vagas suaves, tendo em conta a condição do ser ilhéu, manifesto no apego do autor ao mar.

Enfim, haveria tanto para dizer sobre esta obra. Mas, não me interessa muito por hora dar conta do que é essa pequena obra, tão significativa para mim por ser a primeira e por ter sido apresentada pelo grande José António Gonçalves na Livraria Paulinas, sita na Rua Fernão de Ornelas, Funchal. Venho a este terreiro relevar o seguinte facto, que se prende com o destaque da comunicação social escrita dado à minha primeira obra e com a fome e desinteresse dado à última obra, o romance «A Travessia Redonda» de 2021. Não se percebe este esquecimento, porque o autor é o mesmo e as obras devem ter a mesma relevância quanto ao seu interesse cultural. 

Porque terá suscitado mais interesse uma do que a outra? - A meu ver está relacionado com o contexto social, político, cultural e a forma como anda a nossa comunicação social escrita. Algo empobreceu. No entanto, relevo a pronta disponibilidade da Marta Cília para uma pequena entrevista no seu programa diário Hora 10 na Antena 1 Madeira e outra no Madeira Viva com a Xana Abreu na RTP-Madeira e outra entrevista com a Celina Pereira para Rádio JM...  

Perante as fotos aqui apresentadas fica manifesto que o «Regresso ao Mar», mereceu grande procura da generalidade da comunicação social escrita da Madeira em 2003, antes e depois da apresentação da obra. No entanto, em 2021 com a publicação do romance «A Travessia Redonda», só o Diário de Notícias publicou uma página inteira como notícia antes da sua apresentação ao público e o JM, após o lançamento na Feira do Livro no dia 14 de Novembro, publicou uma pequena tira numa das suas páginas impressas.

O que estamos a fazer à cultura? Ou que aconteceu à nossa comunicação social escrita da Madeira?

Assim sendo, relevo que não estava à espera que merecesse parangonas qualquer uma das obras, porque sei qual do meu lugar e da minha posição ou valor literário e, muito menos, me alimento de mediatismos como alguns se comprazem em considerar. Porém, reparei nestas diferenças, que para uns não deve dizer muito ou mesmo nada, mas para nós que nos interessamos pela cultura e pela sua divulgação devemos estar a pensar com preocupação e lamentar que não estamos a ir por bons caminhos.

Por isso, em face disto tudo alinhavei duas vias de pensamento. A primeira via é de que já há algum tempo venho a acompanhar várias publicações de livros na Madeira (e muito boas obras têm vindo a lume), peças fabulosas de teatro, cinema e tantas outras atividades culturais de relevante qualidade, mas que na comunicação social escrita têm merecido um medíocre destaque.

A segunda via de pensamento prende-se com esta constatação, a meu ver mais grave, a comunicação social escrita na Madeira empobreceu, porque afunilou a sua atenção apenas e só nos eventos políticos, nos escândalos, no desporto e nas suas derivadas futilidades, na vida frívola dos famosos, e nas notícias corriqueiras do quotidiano, que devem ser as melhores quando mete acidentes, violência, animais atropelados ou abandonados e tantas outras situações que não interessam senão para a volatilidade emocional do momento.

Deixo aqui esta dica para nos fazer pensar e nos despertar para um rumo diferente que venha a considerar tudo o que seja manifestação cultural em pé de absoluta igualdade, para que a diversidade neste domínio seja o mais díspar possível, dando azo assim a multifacetadas possibilidades de escolha aos cidadãos interessados.       

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A palavra e a carne

Há uma fome que me consome a alma. Uma fome de ouvir discursos com gente dentro, com carne deste tempo que é o nosso tempo. Obviamente, que escapam alguns discursos que me oferecem um prato ou outro bem recheado de mensagem e de verdadeira comunicação.

Não sei o que pensa a maioria das pessoas que estão a ler este meu escrito em forma de desabafo.

Há uma coisa curiosa. Dos discursos políticos dos últimos dias, alguns que apreciei na apresentação dos respectivos executivos vencedores das últimas eleições autárquicas, reparei com agrado, que metem gente, que têm carne, resumindo-os a uma legítima reivindicação, o cumprimento das promessas. Todos têm este mote quanto ao reivindicam, o bem do povo e a melhoria das suas condições de vida no espaço geográfico das competências dos executivos apresentados para governar. Fiquei agrado, embora não me iluda muito quanto ao futuro, e tenho já a certeza, que muita coisa vai ser feita, mas outra grande parte cairá no rol do esquecimento. Tudo normal. Importa agora relevar que todos encheram os seus textos com gente, com povo, com carne humana viva.

Noutro âmbito, no geral os discursos que se ouvem de teor religioso, deixam-nos cheios de fome. Não há carne dentro, não têm povo e muito menos dão uma linha que seja estratégica de acção que desperte para a criatividade, a ousadia e a livre expressão das capacidades de cada pessoa. É uma dor de alma ouvir discursos vazios, herméticos e recheados de conceitos anacrónicos desfasados da realidade. Uma fome que gera ainda mais fome. Nisto vivemos numa pobreza tremenda e não parece haver maneira de dar a volta a isto nos próximos tempos.

Este é o tempo que exige mensagens claras. Não deviam faltar palavras ousadas de apoio, de incentivo, de denúncia corajosa, de verdade, de alegria, de esperança… Palavras da vida que fossem geradoras de mais vida.

Tenho fome de uma comunicação acutilante, concreta, proclamada com entusiasmo que fizesse vibrar as pedras das paredes dos edifícios centenários e que nos enchessem o espírito de verdadeiro alimento para continuar a existência com o ânimo carregado, para vencer a depressão desta fome que nos consome a alma.

Os pratos da comunicação hoje, na generalidade, trazem-nos ingredientes com os mesmos temperos, com os tamanhos estandardizados e estereotipados. Estamos dominados de discursos cheios de ambiguidades, que parecem afirmar muita coisa, mas no fundo dizem nada, são portas que dão para paredes emparelhadas umas atrás das outras, totalmente opacas, dentro de espaços completamente manipulados e blindados.

Livrem-nos desta fome tenebrosa que que nos assiste, tão manipuladora que infantiliza, porque é contra a força edificante do espírito que comanda os tempos e a existência dos povos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Aquilo em que acredito

 As relíquias não podem e não deve ser justificada a sua devoção sob o ponto de vista da fé. Mas já que não encontraram outra forma mais convincente para justificar a visita das relíquias de São Tiago Menor ao Funchal, vamos então falar de fé e relíquias. Embora, fé e relíquias soam tão mal, porque a fé nunca pode estar associada a relíquias, que nos lembra logo ser apenas e só coisa do passado, por isso, a fé terá de ser sempre realidade nova sobre pessoas, ideias e valores em que se acredita. No caso, a pessoa de Jesus Cristo e o Evangelho. 

Assim sendo, lembrei-me de uma história dos anos vinte antes de Cristo de certo gentio que se aproximou do famoso rabi Schammai com esta proposta: «Metre, estou disposto a converter-me ao Judaísmo se me explicares a tua religião durante o tempo em que se pode ficar apoiado só num pé». O rabi deu voltas e mais voltas à cabeça e o cérebro mostrou-lhe as intermináveis interpretações de tantos séculos sobre os textos da Tora necessárias à salvação. O rabi reconheceu que era impossível resumir tudo o que se relacionava com a Lei da religião judaica em tão pouco tempo.

O gentio não se deteve e manteve o seu desejo de se converter. Foi com Hillel, outro rabi muito famoso da daquela época a quem lançou o mesmo desafio. Hillel não podia ser mais categórico: «Tudo o que te parece mau para ti, não faças aos outros, aqui está toda a Tora (Lei). Tudo o resto não passa de comentários. Vai e aprende».

Tempos mais tarde esta história voltou a acontecer, não com um gentio, mas um judeu, doutor da Lei, um perito na interpretação dos textos bíblicos. A pergunta foi dirigida a Jesus que não tinha frequentado nenhuma escola, mas que se atrevia a fazer ousadas tiradas na disputa/conflito das interpretações: «qual é o mais importante de todos os mandamentos?» Jesus respondeu de forma mais positiva que Hillel: «Ama o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todas as forças, o segundo mandamento é este: «Ama o teu próximo como a ti mesmo». Diz-nos São Marcos, que o doutor da Lei ficou espantado e satisfeito com a resposta (Mc 12, 28-32).

Estas evocações que fiz servem para nos centrar no essencial. A fé só tem um único alvo, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Tudo o que daí advém resulta de interpretações que podem edificar a fé como a podem anular completamente. Normalmente pervertem mais do que edificam.

Eu compreendo o esforço que se anda a fazer para justificar e valorizar umas relíquias de São Tiago Menor, um pedaço de osso, disseram, vindo diretamente do centro da cristandade, Roma, como se isso fosse de imediato razão suficiente para não se questionar nada e para aceitar sem pestanejar sob a capa da fé.

Não é aceitável que nos tempos de hoje se pegue em relíquias dos santos para se catalogar os cristãos. Os que as aceitam e que diante delas ajoelham, são os crentes, os salvos, os outros que as questionam, são os perdidos sem fé, os reles descrentes. Este maniqueísmo é absurdo, quando se trata de um acessório e não daquele centro onde gravita a dimensão da fé e da verdadeira espiritualidade.

Digam o que disserem, mas os tempos que vivemos não estão virados para esta forma eufemisticamente designada de «evangelização». Também não será por esta via que se vai cimentar a tão propalada comunhão e união, quando em muitas outras questões fundamentais da vida há atentados grosseiros que impedem uma autêntica convergência de ideais.

A fé não pode ser um capacete que serve para tudo, muito menos deve ser argumento fácil para rebater aquilo que nos incomoda e que nos contraria. Não será de ter em conta que esquartejar corpos para veneração e adoração tão unanimemente aceite nos tempos medievais, hoje nos soe a morbidez? – Eu penso que sim. E continuarei a não crer nisso, mesmo que seja excomungado ou queimado vivo na Praça do Município.

Aquilo em que acredito remete-me a um passado, como é óbvio, mas não me situa no passado nem muito menos me faz viver como se estivesse presencialmente nesse passado. Por isso, aprendi do pensador Jean Dausset: «Todo o novo conhecimento é uma libertação e (que) a ignorância é a maior das escravaturas. Não se pode, não se deve parar a marcha da ciência. Se a humanidade se cansar no caminho da descoberta voltará às trevas». O Cardeal Tolentino Mendonça no livro «Uma beleza que nos pertence» define a fé desta forma: «A fé é uma história de fidelidade que se constrói, não é o mero entusiasmo de um momento».

Malogradamente, temos vivido assim com «fogachos de fé» como os picos do coração. Só para nomear alguns: eles foram os 500 anos da Diocese do Funchal, as duas visitas da Imagem Peregrina de Fátima e agora os 500 anos do Voto a São Tiago Menor, a par da visita das suas relíquias vindas desse lugar «exemplar da fé» que é o centro da cristandade. A visita de tão extraordinária divindade vai animar isto até ao final do ano.

É preciso cuidar que muito daquilo que se anda a pregar como expressão da fé e sobretudo o esforço que se faz para canalizar a fé para objetos, pessoas, ideias, pode resultar em pura idolatria e ideologia. Daí que não deve ser de somenos escutar as palavras do Cardeal Mendonça no livro supracitado: «A fé em Deus sobrepõe-se a todas as convenções culturais e a todas as lógicas puramente humanas. A fé é essa confiança pessoal colocada em Deus e que ultrapassa tudo. Abraão ensina-nos que a fé é um modo de existir colocado diante do incompreensível desígnio de Deus, ele deixa tudo em suspenso, exceto a relação com Deus». Por isso, nada de julgamentos e deixem-me viver a minha fé como «um modo de existir» diante do mistério que nos assiste. Não me tragam mais clichés nem muito menos juízos de valor com o intuito de me converter a caprichos desfasados da realidade histórica em que vivemos.

sábado, 9 de outubro de 2021

Filme em exibição Fátima


«Fátima - A História de um Milagre», é um filme estadunidense de 2020 dirigido por Marco Pontecorvo. Está em exibição nos cinemas. É um filme fraco. Não há novidade nenhuma na história que conta.

No entanto, mais uma vez serve filme para denunciar o estado da sociedade portuguesa da primeira metade do séc. XX. Uma sociedade caracterizada essencialmente pela pobreza extrema, o analfabetismo dominante e completamente mergulhada numa religião infantil, cuja catequese se imponha pelo medo do diabo e do inferno. A submissão ao moralismo doentio fazia o seu caminho.

Pensei que o filme se desbobinaria à volta do interessante diálogo entre a Irmã Lúcia (atriz brasileira Sónia Braga) e o professor, estudioso do fenómeno de Fátima, no convento de Coimbra onde estive muitos anos a Irmã Lúcia na Clausura. No primeiro diálogo, Lúcia, confessa ter lido os vários estudos do professor, que concordava com muitas coisas do que ele dizia, outras não, mas que apreciava muito as opiniões contrárias à sua.

O desenrolar da história do filme interrompe-se, volta e meia, para ir ao diálogo entre os dois. Aqui percebermos que estamos perante duas pessoas inteligentes, onde transparece a crente e o descrente. O diálogo anda à volta do testemunho da Irmã Lúcia sobre os acontecimentos de Fátima. O professor que recolhe elementos para o livro que pretende escrever sobre Fátima, faz perguntas e remata provocações que desafiam as certezas de Lúcia. Lúcia dá conta das suas certezas, é certo, mas não esconde as suas dúvidas e dá laconicamente conta delas.

A Frase final de Albert Einstein, ilustra bem toda a mensagem do filme e onde pretendia chegar o realizador, Marco Pontecorvo: «Há duas formas para viver a sua vida. Uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre».

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A ceia estragada

Os dias corriam calmos. Maria Arlete já tinha a comida da ceia ao lume.

Os homens vindos «de fora» para o trabalho nos poios da Courela, que este ano estavam pujantes de uvas brancas Cercial, dispuseram-se mais ou menos à distância de metro e meio um do outro, para lançarem a enxada com todo o cuidado bem fundo para não estragarem as vides com as uvas nem se ferirem uns aos outros.

Mais um ano tinha chegado para que a terra seja removida e aconchegada junto dos troços grossos das parreiras que estendiam vergônteas para todos os lados de onde despendiam cachos maravilhosos de uvas suculentas, prometendo aquele delicioso vinho Cerceal para vender aos turistas.

No final do dia, os homens seguiam à frente de Manuel Patrocínio em direcção à cozinha. Passaram as mãos e a cara pela pia de pedra que estava ao canto do terreiro sempre cheia de água para este efeito. Ninguém se senta à mesa sem lavar as mãos para comer, Arlete ficava furibunda se tal não acontecer.

Os pratos de sopa já estavam a postos sobre a mesa, dali espalhava-se um aroma maravilhoso que a vizinhança morria de inveja. «A Arlete cozinhava mesmo bem», todos diziam. Os ingredientes da sopa só podiam ser da pesada, carne de porco salgada do porco morto na última festa, feijão bem gordinho e tenro que Arlete tinha colhido nessa tarde, olhos de couves verdes, semilhas e batatas. Tudo resultante da lavoura daquela casa, exceptuando a massa grossa da fábrica Insular. Arlete já tentou, mas não deu com o jeito de fazer massa.

Sentados à mesa da ceia, falaram do padre da freguesia que andava numa roda-viva por causa de umas coisas que vinham à igreja, que estariam em exposição, para rezas, procissões, missas e cada um dar a sua oferta como pudesse e entendesse.

Os três homens vindos de fora para trabalhar bem batalhavam para ver se diziam o raio do nome dessa coisa do santo que ia estar prá ali aquele tempo todo. Arlete e Manuel do Patrocínio também sabiam do que se ia passar, mas não conseguiam dizer o peste do nome da coisa do santo que vinha visitar a nossa igreja. Foram ensaiando alguns nomes, por exemplo, «coisas ricas»; «cabelos»; «ossos»; «um pé ou uma mão»; «a cabeça»; «um dedo»… «Eles dizem um nome pra isso, mas ninguém aqui se consegue lembrar», disse por fim Manuel do Patrocínio.

O mais afoito dos homens, tanto no trabalho como na língua, rematou logo. «Não ligo a essas babuseiradas, como sabem que essas coisas pertenciam ao santo se ele já morreu há mais de dois mil anos, se bem me lembro quando tiraram a minha mãe da cova, chamaram-me para ir ver, ao fim de cinco anos estava tudo em pó. Não acredito em nada disso».

Arlete ouvia em silêncio a conversa dos homens, dizia uma palavra ou outra, cá e lá, porque as mulheres não se metem em conversa de homens, entendia que o seu trabalho era servir conchas de sopa quando ela faltasse no prato de cada um. Mas, é certo que a paz das mulheres mantem-se até ao momento em que a mostarda não lhes chega ao nariz.

Manuel Patrocínio volta a entrar na conversa e com este remate do marido, Arlete não se conteve e começou logo a desbobinar por ali abaixo. Manuel, tinha apenas dito isto, «cá pra mim, é mais uma coisa que os padres inventaram pra se entreterem e sacarem mais algum da gente».

Arlete foi aos arames. Desatou por ali abaixo um rol de doutrina que eles todos ficaram boquiabertos e até perderam a vontade de continuarem a comer.

Manuel pediu a Arlete que tivesse calma. Ela ficava ainda mais exaltada, levantava a voz contra o marido, apontando o dedo para todos os presentes, chamando-os de «cabrenistas» e inimigos de Deus e das suas coisas. A ofensa foi tal, que se levantaram da mesa um a um e foram-se embora barafustando contra esta «beata maluca que o Manuel Patrocínio tem em casa». «Deus me livre de ter que conviver com uma mulher deste feitio». «O Manuel é uma joia de pessoa, não merecia isto». «Venho trabalhar com ele, é por causa dele, se fosse por causa do corisco da mulher nunca ponha os pés nesta casa». Foram-se os três embora bem sangados contra Arlete e pedindo desculpa a Manuel pelo sucedido.

Manuel do Patrocínio, agora a sós com Arlete, disse-lhe que ela tinha estragado tudo, «que a hora da refeição é sagrada, e por causa de coisas da igreja, deitaste tudo a perder. Não me parece certo».

Arlete responde-lhe «que não se importava, não tinha feito pecado nenhum, porque tinha defendido as coisas do santo e que eles é que tinham pecado porque disseram o piorio da igreja e das coisas do santo».

No meio desta trapalhada fico claro que ninguém sabia dizer o nome dos artefactos que para aí vinham alusivos a um santo. Manuel do Patrocínio deteve-se a pensar e remoendo a desfeita que Arlete tinha desferido contra os seus trabalhadores, pensava com os seus botões, «mas o que é mais importante, umas coisas distantes, mesmo que sejam de um santo ou santa, ou a vida vivida na partilha de uns com os outros? – Eu preciso destes homens para me ajudarem a remover a terra e mais do que isso preciso da sua amizade, por isso, não pode ser que coisa nenhuma de santos, mesmo que me digam serem divinas, ser mais importante que a fortuna da entreajuda e da partilha solidária entre os seres humanos».

Arlete, agora mais contida e com a clarividência do marido, anuiu que falhou e reconheceu o seu erro. Amanhã teria uma oportunidade para se redimir diante dos trabalhadores de Manuel e prometeu caprichar nas refeições. No entanto, Manuel do Patrocínio lembrou à sua compenetrada esposa devota, «se eles vierem, agora que sabem bem quem tu és, uma bela relíquia de pôr na ponta da orelha»…     

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Jorge Sampaio

Pelo muito que deixou, mas principalmente pelo testemunho de serviço público e de entrega a causas nobres. O seu trabalho com os refugiados é deveras relevante, assentava no combate ao maior mal do mundo: «o medo e a ignorância». Por tudo isto e também pela frase seguinte, merece o nosso apreço e gratidão: «NENHUMA GUERRA É COMPARÁVEL À PIOR DAS CRISES». Devia servir para ensinar os belicistas que semeiam morte e destruição pelo mundo fora, em nome de razões que só eles viram serem justas. Será para mim um Presidente da República inesquecível.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Saltos Altos

A noite de ontem foi preenchida com a redobrada felicidade de assistir ao espetáculo no Teatro Municipal Baltazar Dias, a peça em formato de bailado, Saltos Altos. É mais um grito de alerta sobre os temas reincidentes sobre a condição da mulher no que diz respeito a ser bastas vezes desconsiderada nos vários patamares da vida em sociedade.

A peça Saltos Altos direciona ao espectador um forte murro no estômago, todo o universo da mulher, a igualdade de género, as lutas constantes para que sejam forçadas a construírem uma imagem que esteja muito acima daquilo que são realmente. A manutenção do equilíbrio em cima dos saltos altos (sinal e símbolo indispensável do universo feminino), é uma violência injustificável, se tivermos em conta que a mulher não foi criada para suster o corpo acima daquilo que a natureza determina. O que isso acarreta de malefícios sob pressão psicológica e em termos da saúde física.

Por conseguinte são denunciadas todas as injustiças que ainda fazem erguer uma monumental clivagem de sofrimento. A linguagem que anda de boca em boca diariamente, é bem reveladora dessa injustiça que menoriza a condição de ser mulher. E é tão grave que tanta gente, maiormente representantes de instituições respeitáveis, que deviam estar na linha da frente no combate a este status quo, mas, ao contrário, esforça-se exaustivamente e extensivamente, mesmo que algumas vezes redunde o ridículo, para justificar a permanência desse vocabulário da soberba patriarcal e do machismo…

Tão bom que a maioria do elenco da peça tenham sido jovens a dizerem não, chega de ansiedade e de todos os obstáculos a que estão sujeitas as mulheres na família e na sociedade em geral. Gostei particularmente quando o grupo responde ao texto magnificamente sincronizado: NÃO.

Na sinopse está dito: «O que quer dizer viver num patriarcado? Uma sociedade igualitária não combina com patriarcados nem matriarcados! - “Eu não quero aceitar as coisas que não posso mudar, quero mudar as coisas que não posso aceitar.” (Angela Davis)». É esta a luz que faz falta às sociedades para se iluminarem, para que de uma vez por todas deixem de ser agremiações de pessoas que se movem por interesses de poder e domínio à conta do sofrimento esclavagista de largas maiorias.

Saltos Altos é um grito-alerta muito bem-vindo nestes tempos que estão a retomar de forma desavergonhada regras absurdas contra as mulheres. Os talibãs ressuscitados, vieram revelar que os altos padrões, definidos pelas sociedades, da «mulher inferior ao homem» ou da «mulher perfeita», estão vivos e mantêm-se na cabeça de muita gente e tomara que fossem só em sociedades consideradas menos evoluídas. 

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O campo planta todo o mundo janta

Após uma leitura atenta da obra «A Agricultura Madeirense e Eu», do Eng.º Duarte Caldeira, venho a terreiro dar a minha opinião sobre a obra.

Antes de mais apraz-me dizer que será um livro incontornável para quem venha a ter desejos de fazer a hercúlea e heroica história da agricultura na Madeira. Apreciei o capítulo especial sobre o Porto Santo, as suas especificidades, o potencial produtivo que ele oferece, cujo segredo está no aproveitamento das águas, na ação política e na vontade de trabalhar dos porto santenses.

Como alguém já definiu e eu corroboro, esta obra é «enciclopédica». Basta reparar logo que perpassa todas a áreas e atividades relacionadas com a agricultura na Madeira. A história como tudo começou desde chegada dos primeiros habitantes, o que fizeram, o como fizeram.

Assim, feita a descoberta das especificidades dos terrenos, a sua transformação em poios, desenvolveu-se de seguida a engenharia da água e a sua canalização - a obra mais extraordinária que a Madeira tem a par das monumentais paredes empedradas com a pedra «viva» da Madeira – as diversas chamadas de atenção às autoridades políticas, as denúncias das muitas asneiras que se fizeram neste campo, as abalizadas e comprovadas sugestões… Não falta aturada reflexão sobre a fruticultura, a bananicultura, a vitivinicultura, a cana-de-açucar, a horticultura, a criação de gado e o pastoreio, a pecuária... Enfim, uma panóplia de assuntos relacionados com todos os domínios da agricultura que devem ser tidos em conta por todos nós, porque a agricultura é fundamental para as populações, a sua fixação e o seu desenvolvimento.

Não deixa de reclamar uma forte atenção para comercialização dos produtos, a joia da coroa da agricultura, que deve ser feita com benefício justo para o agricultor, coisa que não aconteceu durante muitos anos e que veio contribuir bastante para o abandono agrícola que sofremos. Os intermediários e os grupos económicos que se alaparam ao suor do agricultor para o explorarem, foram dos principais a contribuírem para a fuga de muitos agricultores, o empobrecimento populacional das comunidades rurais e daí a descaraterização da nossa paisagem.  

No final do livro deu voz às florestas. Alerta para a praga dos incêndios e de como podem ser combatidos ao longo de todo o ano e não apenas quando as labaredas consomem o património ambiental.

Tem um belíssimo capítulo sobre jardinagem.

A obra termina com um nota sobre o autor, onde ele se apresenta de forma simples, mas com conhecimentos científicos e com a sua comprovada experiência em todas estas matérias, particularmente, na produção de vinhos Terras do Avô. Não se nota qualquer resquício de altivez, mas de forma simples, fala-nos de técnicas experimentadas cientificamente em diálogo franco com a experiência concreta dos agricultores.

Por isso, estou plenamente de acordo quando se diz, que hoje temos mais agricultores de gabinete do que agricultores a mexer na terra. A geração do Eng.º Duarte Caldeira comprova o contrário, que é possível, ciência agrícola, inovação tecnológica e prática concreta.

Esta obra para mim serviu mais uma vez para perceber a fortuna fertilizante que é a nossa amada terra da Ilha da Madeira, que se lamenta ter sido esquecida, despreza, abandonada…

Esta obra merece ser lida, estudada nas escolas para que as gerações mais novas despertem para o potencial de enormes possibilidades que a Madeira tem e o quanto podem os seus terrenos aráveis oferecerem de sustento à existência dos madeirenses e os que nos visitam saborearem do melhor do mundo que a nossa agricultura pode oferecer quanto à excelência de paladares.

Caro Eng.º Duarte Caldeira, parabéns por esta obra emblemática. Espero que seja valorizada e que sirva a muitos para despertarem para esta atividade tão antiga quanto é a humanidade, a agricultura.

E com o mote, que é preciso não esquecer, «se o campo não planta a cidade não janta», se faz esta obra rica de conteúdos importantes para a história da agricultura da Madeira. Que seja reavivado este grito de guerra dos trabalhadores rurais que lutam pela valorização da terra, mas também que seja uma constatação empírica do quanto será importante hoje e no futuro fazer valer qual é que é a origem da alimentação que chega à mesa das pessoas.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Perdão às mulheres

Bertrand Russel escreveu: «a teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, a falsidade». Por conseguinte, poderemos afirmar que depois de se retirar todas as inverdades, o que resta poderá ser verdade. Eu convivo com isto, embora algumas vezes, pareça que vou vacilar. 

Havia um princípio antigo nas casernas dos exércitos que nunca se devia duvidar das verdades ditas pelas autoridades, eles é que sabem e estão sempre bem informados. Quem está para baixo não sabia de nada.

Deve ter vindo então a regra da submissão geral dos povos, obedecer sempre às nossas autoridades superiores, porque eles estão sobejamente informados, e no caso das chefias religiosas, estão mais perto do céu e por isso a sua voz é escutada mais depressa por Deus. Não sei se tem funcionado em todas as situações. Não quero saber se tem havido falhas de comunicação quanto a isso.

Vem este intróito a propósito da celeuma que anda no ar por causa do tratamento que o mundo masculinizado dá à condição e ao papel das mulheres na vida familiar e social. Certo é que a subordinação das mulheres em relação aos homens continua.

No 26 de Agosto, é celebrado o Dia Internacional da Igualdade Feminina. Tendo em conta este pretexto sou levado a pensar que há muito para pedir perdão às mulheres.

Perdão por anos e anos de machismo pretensamente auto suficiente, porque na hora da verdade, são elas que salvam os homens.

Perdão pela manutenção de uma linguagem contra as mulheres profundamente ofensiva e humilhante. E quando assim é, eu não considero que isso esteja sob a contemplação da liberdade de expressão, por isso, devemos deixar andar.

Perdão por ainda existirem muitas mulheres que se calam e vivem subjugadas pacificamente diante das ditaduras dos (seus) homens. E que consideram irrelevante e inglória esta luta pela igualdade.

Perdão pelo não reconhecimento de que determinado vocabulário é anacrónico e, como alguns dizem, ser lesivo dos Direitos Humanos Universais. Fazer tudo para contornar isso e enfeitar com palavreado ao abrigo de metáforas abusivas, é ofensivo contra as mulheres.

Perdão pela comparação absurda entre os versículos bíblicos com os versos dos Lusíadas de Luiz Vaz de Camões. A Bíblia, é um livro vivo que reúne vida passada para iluminar a vida presente. Não pode ser comparada com um poema épico determinado por um momento histórico irrepetível, que deve ser apreendido tal como é e aconteceu. A Bíblia tem outra função, nunca pode ser letra morta, mas realidade viva, que se faz carne em cada tempo e em cada contexto histórico. Se assim não for não pode converter-se em alimento espiritual e litúrgico para a vida concreta de cada tempo.

Perdão por se fazer da Bíblia um livro estático, inalterável perante a existência que se altera todos os dias. As religiões têm este pecado terrível para confessar.

Perdão pelo menosprezo e desprezo pelas mulheres dentro de instituições que deviam ser exemplares quanto à prática da igualdade de oportunidades para homens e mulheres em igualdade de circunstâncias.

Perdão por causa da (nossa) hierarquia da Igreja Católica ser tão benévola e promotora dos «feminismos masculinos», mas tão dura com as características idiossincráticas das mulheres.

Perdão por uma instituição, como a nossa Igreja Católica, que bebeu do Evangelho sete Sacramentos, mas só seis deles é que podem ser concedidos às mulheres, o Sacramento da Ordem, que é só para homens machos.

Perdão por se fundamentar esta discriminação e outras que por aí ainda andam, na Bíblia Sagrada e, particularmente, no Evangelho de Cristo, onde Ele se revela o Mestre por excelência na prática da inclusão.

Perdão por continuarmos teimosamente com um Evangelho coisa do passado, pois só faz sentido crer, na «Palavra de Deus», quando ela é viva e eficaz na realidade concreta de todos os tempos.  

Perdão por estarem reduzidas as mulheres na nossa Igreja Católica a simples serviçais de homens que se dizem «chamados» por Deus, que se gabam de serem seus representantes, quando Dele irradia a igualdade, a fraternidade, a misericórdia e o perdão incondicional.

Perdão pela «loucura» de uma hierarquia misógina, que não olha a meios nem mede as palavras para manter uma rede de benefícios e privilégios à conta do insulto do vocabulário que considera ser letra morta, só porque dá jeito. Péssimo contributo a autores fundamentais da Bíblia e à doutrina que devia ser sempre dinâmica, viva e eficaz como ensinamento, referência ética e valor incontornável na busca do sentido da existência.

Perdão por este estado de coisas graves nos tempos que correm, onde o populismo, o «talibanismo» se impõem sob o domínio das armas para serem utilizadas contra as mulheres e as crianças, o elo mais fraco nas sociedades patriarcalistas, onde o machismo zarolho em que vivemos encontra caminho livre para vingar.