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sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Casa onde há fome há fartura de tempo

A garoa cobriu a encosta por inteiro. Estava tão desagradável que não permitia sair de casa. Mesmo que várias mãos suaves e delicadas já tivessem emborcado a leiteira vezes sem conta, mas de lá de dentro não caía nada para ninguém. A fome e o tempo estavam juntos naquele dia. Quanto mais percebiam do vazio do precioso líquido mais se avolumava o retinir da tripa daquelas pobres almas que almejavam comida de qualquer maneira.

A tarde demorou a vir, mas logo depois veio a noite, prometendo ser longa e farta de fome, nada se vislumbra para comer. Em casa de pobre só o tempo é que é em abundância. Ele é mestre a fartar como nada quando se espera e desespera pelos atrasos ou atrasados, mas também é exímio a fartar quando bate as horas em cima de horas sem providência de alimento que retempere as forças e sacie o estômago, a alma.

Nisto ouviram umas batidas estridentes na porta, e todos se sobressaltaram. Num breve jogo do empurra a ver quem tomava a dianteira para destrancar a porta, calhou a tarefa a quem competia naquele dia ter ido buscar o sacrossanto líquido ao palheiro das vacas. Com a mão direita certeira e com toda a força destrancou o canhão da fechadura e com a mão esquerda puxou com violência o ferrolho que sita ao meio da porta. Entreabriu a medo uma fresta e deitou os olhos bem abertos para fora. À sua frente estava a vizinha de baixo com um farnel de semilhas e uma travessa enorme de torresmos ainda a fumegar, pois tinham saído nesse instante da panela. Logo o cheiro das semilhas cozidas e os dos torresmos inundou todos os cando daquele reduto onde se guardavam comodamente aquelas almas famintas do tempo e da preguiça.

- Ó… Divinas mãos! – Gritaram todos dentro de casa em coro, eternamente agradecidos, pela dádiva desta alma bondosa da vizinha que se lembrou de partilhar generosamente do seu alimento.

É certo que a intempérie atrapalha a vida. Mas a preguiça é sempre mais forte que tudo. Ora vejamos, que reclamava manhosamente que as ervas carregadas de pingos lhe molhavam as pernas e assim ficava doente. Por isso, ali se deixou ficar sobre o manto da preguiça deixando todos à fome, argumentando sofisticamente que o tempo rebola para baixo mais depressa do que para cima.

Não restam dúvidas, porém, para alguém que certeiramente aduziu que a vida embeleza-se com solidariedade, não olhando a nada nem a quem, e doutro modo, se o trabalho desse dinheiro, todos os pobres seriam ricos.

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