As relíquias não podem e não deve ser justificada a sua devoção sob o ponto de vista da fé. Mas já que não encontraram outra forma mais convincente para justificar a visita das relíquias de São Tiago Menor ao Funchal, vamos então falar de fé e relíquias. Embora, fé e relíquias soam tão mal, porque a fé nunca pode estar associada a relíquias, que nos lembra logo ser apenas e só coisa do passado, por isso, a fé terá de ser sempre realidade nova sobre pessoas, ideias e valores em que se acredita. No caso, a pessoa de Jesus Cristo e o Evangelho.
Assim sendo, lembrei-me
de uma história dos anos vinte antes de Cristo de certo gentio que se aproximou
do famoso rabi Schammai com esta
proposta: «Metre, estou disposto a converter-me ao Judaísmo se me explicares a
tua religião durante o tempo em que se pode ficar apoiado só num pé». O rabi
deu voltas e mais voltas à cabeça e o cérebro mostrou-lhe as intermináveis
interpretações de tantos séculos sobre os textos da Tora necessárias à
salvação. O rabi reconheceu que era impossível resumir tudo o que se relacionava
com a Lei da religião judaica em tão pouco tempo.
O gentio não se deteve
e manteve o seu desejo de se converter. Foi com Hillel, outro rabi muito famoso da daquela época a quem lançou o
mesmo desafio. Hillel não podia ser
mais categórico: «Tudo o que te parece mau para ti, não faças aos outros, aqui
está toda a Tora (Lei). Tudo o resto não passa de comentários. Vai e aprende».
Tempos mais tarde esta
história voltou a acontecer, não com um gentio, mas um judeu, doutor da Lei, um
perito na interpretação dos textos bíblicos. A pergunta foi dirigida a Jesus que não tinha frequentado nenhuma escola, mas que se
atrevia a fazer ousadas tiradas na disputa/conflito das interpretações: «qual é
o mais importante de todos os mandamentos?» Jesus respondeu de forma mais
positiva que Hillel: «Ama o Senhor
teu Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com
todas as forças, o segundo mandamento é este: «Ama o teu próximo como a ti
mesmo». Diz-nos São Marcos, que o doutor da Lei ficou espantado e satisfeito
com a resposta (Mc 12, 28-32).
Estas evocações que fiz
servem para nos centrar no essencial. A fé só tem um único alvo, Deus Pai, Deus
Filho e Deus Espírito Santo. Tudo o que daí advém resulta de interpretações que
podem edificar a fé como a podem anular completamente. Normalmente pervertem
mais do que edificam.
Eu compreendo o esforço
que se anda a fazer para justificar e valorizar umas relíquias de São Tiago
Menor, um pedaço de osso, disseram, vindo diretamente do centro da
cristandade, Roma, como se isso fosse de imediato razão suficiente para não se
questionar nada e para aceitar sem pestanejar sob a capa da fé.
Não é aceitável que nos
tempos de hoje se pegue em relíquias dos santos para se catalogar os cristãos.
Os que as aceitam e que diante delas ajoelham, são os crentes, os salvos, os
outros que as questionam, são os perdidos sem fé, os reles descrentes. Este
maniqueísmo é absurdo, quando se trata de um acessório e não daquele centro
onde gravita a dimensão da fé e da verdadeira espiritualidade.
Digam o que disserem,
mas os tempos que vivemos não estão virados para esta forma eufemisticamente
designada de «evangelização». Também não será por esta via que se vai cimentar
a tão propalada comunhão e união, quando em muitas outras questões fundamentais
da vida há atentados grosseiros que impedem uma autêntica convergência de
ideais.
A fé não pode ser um
capacete que serve para tudo, muito menos deve ser argumento fácil para rebater
aquilo que nos incomoda e que nos contraria. Não será de ter em conta que
esquartejar corpos para veneração e adoração tão unanimemente aceite nos tempos
medievais, hoje nos soe a morbidez? – Eu penso que sim. E continuarei a não
crer nisso, mesmo que seja excomungado ou queimado vivo na Praça do Município.
Aquilo em que acredito
remete-me a um passado, como é óbvio, mas não me situa no passado nem muito
menos me faz viver como se estivesse presencialmente nesse passado. Por isso,
aprendi do pensador Jean Dausset:
«Todo o novo conhecimento é uma libertação e (que) a ignorância é a maior das
escravaturas. Não se pode, não se deve parar a marcha da ciência. Se a
humanidade se cansar no caminho da descoberta voltará às trevas». O Cardeal
Tolentino Mendonça no livro «Uma beleza que nos pertence» define a fé desta
forma: «A fé é uma história de fidelidade que se constrói, não é o mero
entusiasmo de um momento».
Malogradamente, temos
vivido assim com «fogachos de fé» como os picos do coração. Só para nomear
alguns: eles foram os 500 anos da Diocese do Funchal, as duas visitas da Imagem
Peregrina de Fátima e agora os 500 anos do Voto a São Tiago Menor, a par da
visita das suas relíquias vindas desse lugar «exemplar da fé» que é o centro da
cristandade. A visita de tão extraordinária divindade vai animar isto até ao
final do ano.
2 comentários:
Obrigada, Senhor Padre José Luís, por este excelente texto. A expressão e exemplos de Fé vêm do coração e dos atos que praticamos e não da adoração de Relíquias.
Concordo inteiramente consigo, a Igreja não acompanha a evolução dos tempos, parece querer voltar ao tempo medieval.
Que extraordinário texto sobre a fé, essa força que nos anima, e que nos ajuda a sair na nossa construção permanente. São Tiago Menor interpretou o significado da fé, como o bem que vamos construindo e servindo os outros, os mais frágeis e os excluídos das nossas sociedades.
Obrigado Pe. José Luís.
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