Publicidade

Convite a quem nos visita

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Um brinde à inexaurível fraternidade


 Crónica

10 Dezembro de 2021

O tio de cima vivia paredes meias com o tio de baixo. Estavam ligados pelo património, que herdaram da mesma casa paterna, porque não parecendo a ninguém, eram irmãos de sangue. Todos os adoptaram como tios, um de cima e outro de baixo. Algumas vezes guerreavam por causa das propriedades, das águas da rega, as galinhas que comiam as couves do terreno do outro, a cabra e os seus filhotes que se tinham soltado e lá foram à rama das batatas… Com toda a certeza que veria briga de algum lado.

A mulher do tio de cima, a Silvina, não perdoava uma que fosse. A defesa das propriedades ameaçadas do tio de baixo, era mesmo ele que vestia a toga de advogado, que em pessoa, também, não deixava por mãos alheias as suas advertências ao irmão, ralhando em altas goelas, apedrejando as atrevidas galinhas e as malditas cabras.

O tio de cima era ao contrário do irmão. Sempre pacífico nunca repostava mesmo que à vista de todos estivesse com a razão. Não se importava com os estragos, paciente como um anjo voltava a fazer sem pestanejar e tantas vezes ao arrepio da esposa, que era de língua afiada e sempre pronta para deitar da garganta para fora todo o palavreado que a alma afoita produzira. Afogava-se se não falasse.

O irmão, o de baixo, não perdoava nenhuma investida. Qualquer coisa servia para o vermos enfurecido. A sua mulher, a Maria, era uma paz de alma, dedicava-se às lides de casa e passava a maior parte do tempo a confeccionar os alimentos. Bastas vezes sentíamos o cheiro maravilhoso das semilhas a serem fritas para o jantar - lanche reforçado que era comido por volta das 16 ou 17 horas da tarde. Nada se perdia, as semilhas que tinham sobrado do almoço eram agora passadas à frigideira sobre a banha do porco, libertando um aroma raro de apetite e de prazer. Quando nos dávamos conta do cheiro, corríamos em manadas para fazer sentinela junto da porta da cozinha, um tugúrio coberto de palha, com um chão de terra batida onde poisavam panelas, taças de barro e as púcaras onde estava as carnes de vinha de alhos e a salgada da última matança do porco. A lareira estava ao centro, com um lar com dois compartimentos, onde um deles sustinha sempre uma panela com água a ferver.

A pobre mulher, a tia de baixo, já velha, um pouco quebrada para a frente, acusando o peso dos anos, vinha ao nosso encontro com as mãos cheias de talhadas de semilhas sobre uma folha de couve verde para lhe proteger as mãos da quentura e dava uma talhada bem tostada de ambos os lados a cada um de nós, com esta advertência despachante de carinho: - Agora vocês vão com a mãe!

Sem dizermos nada, obedientes, porque o marau do marido, vulgo tio de baixo, não lhe escapava nada, e nós que sabíamos muito bem dos intentos que era capaz, vínhamos contentes para casa, saboreando aquele regalo como toda a gente saboreia nos tempos de hoje um Ferrero Roché.

Já vimos que o tio de baixo facilmente sai do razoável. Mas sempre que precisa do irmão, também não se faz rogado. Admira que se um veio ao mundo para ser mais saído na conversa, na dureza com os outros, incontido na irascibilidade e nas palavras, mas não era tanto habilidoso como o irmão, o tio de cima, que era sempre muito prestável, pois era habilidoso para tantas coisas. Uma hora tirava os dentes podres das gentes contorcidas com dores fatais e insuportáveis. Noutra ocasião cortava os cabelos dos rapazes que ali apontavam com melenas a cobrir os ombros e parte das costas. Ao fim das tardes saía de casa para castrar porcos e bodes. Para tudo tinha um engenho raro que trouxe consigo do seio maternal e que fazendo bom proveito serviu a tanta gente desamparada neste mundo.

O irmão, tio de baixo, sabendo dessas habilidades todas, mesmo, por vezes, sendo tão intolerante com o irmão, não hesitava um segundo quando das suas mãos precisava.

- Olha a porca pariu onze bácoros. - Disse tio de baixo.

Levando as mãos à testa, ao peito e a cada um dos ombros, fazendo o sinal da cruz disse, tio de cima com admiração: – benza-te Deus! Rogai por nós Santo Antão! Estão todos bem?

- Sim… Há uns mais fraquinhos que outros. Mas já comecei a deitar o leite das cabras à porca para que não lhe falte leite nenhum nas tetas, para os bichos não definharem. Um dia destes passa por lá para capares os machos.

Assim, se acertou o dia. E como não podia deixar de ser, prontamente, se apresentou tio de cima para realizar a excisão dos testículos dos bácoros machos. Um a um foram passando pelas suas mãos bem presos entre as suas pernas valentes, aplicando um golpe certeiro em cada um dos lados do membro, que vertia sangue e os guinchos estridentes dos bichos subiam lombos e desciam vales pelo sítio todo. Um momento assaz cruel para os meus olhos da alma.

- É o último! - Alguém declarava.

Para finalizar vinha a tia Maria com um farnel de semilhas bem aloiradas com a banha na frigideira. Colocava a sua especialidade sobre a lenha num canto do chiqueiro, e com aquele manjar saboroso, despejavam dois jarros de vinho seco, acabadinho de tirar da pipa da última colheita. A diversão começava sem atrapalho, só e apenas a solidariedade e a entreajuda. Por mais que brigue ou se guerreie a humanidade, nunca deixará de ser consanguínea e feita de carne da mesma carne.  

Pelo menos nestas ocasiões nenhum estrago de galinhas ou de cabras que se soltavam dos currais mal-amanhados nem as trocas e baldrocas dos giros das águas de rega e muito menos as pedras que se soltavam das paredes dos poios que pisavam a colheita de um ou do outro, vieram atrapalhar o brinde à genuína fraternidade.

Sem comentários: