Publicidade

Convite a quem nos visita

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A ceia estragada

Os dias corriam calmos. Maria Arlete já tinha a comida da ceia ao lume.

Os homens vindos «de fora» para o trabalho nos poios da Courela, que este ano estavam pujantes de uvas brancas Cercial, dispuseram-se mais ou menos à distância de metro e meio um do outro, para lançarem a enxada com todo o cuidado bem fundo para não estragarem as vides com as uvas nem se ferirem uns aos outros.

Mais um ano tinha chegado para que a terra seja removida e aconchegada junto dos troços grossos das parreiras que estendiam vergônteas para todos os lados de onde despendiam cachos maravilhosos de uvas suculentas, prometendo aquele delicioso vinho Cerceal para vender aos turistas.

No final do dia, os homens seguiam à frente de Manuel Patrocínio em direcção à cozinha. Passaram as mãos e a cara pela pia de pedra que estava ao canto do terreiro sempre cheia de água para este efeito. Ninguém se senta à mesa sem lavar as mãos para comer, Arlete ficava furibunda se tal não acontecer.

Os pratos de sopa já estavam a postos sobre a mesa, dali espalhava-se um aroma maravilhoso que a vizinhança morria de inveja. «A Arlete cozinhava mesmo bem», todos diziam. Os ingredientes da sopa só podiam ser da pesada, carne de porco salgada do porco morto na última festa, feijão bem gordinho e tenro que Arlete tinha colhido nessa tarde, olhos de couves verdes, semilhas e batatas. Tudo resultante da lavoura daquela casa, exceptuando a massa grossa da fábrica Insular. Arlete já tentou, mas não deu com o jeito de fazer massa.

Sentados à mesa da ceia, falaram do padre da freguesia que andava numa roda-viva por causa de umas coisas que vinham à igreja, que estariam em exposição, para rezas, procissões, missas e cada um dar a sua oferta como pudesse e entendesse.

Os três homens vindos de fora para trabalhar bem batalhavam para ver se diziam o raio do nome dessa coisa do santo que ia estar prá ali aquele tempo todo. Arlete e Manuel do Patrocínio também sabiam do que se ia passar, mas não conseguiam dizer o peste do nome da coisa do santo que vinha visitar a nossa igreja. Foram ensaiando alguns nomes, por exemplo, «coisas ricas»; «cabelos»; «ossos»; «um pé ou uma mão»; «a cabeça»; «um dedo»… «Eles dizem um nome pra isso, mas ninguém aqui se consegue lembrar», disse por fim Manuel do Patrocínio.

O mais afoito dos homens, tanto no trabalho como na língua, rematou logo. «Não ligo a essas babuseiradas, como sabem que essas coisas pertenciam ao santo se ele já morreu há mais de dois mil anos, se bem me lembro quando tiraram a minha mãe da cova, chamaram-me para ir ver, ao fim de cinco anos estava tudo em pó. Não acredito em nada disso».

Arlete ouvia em silêncio a conversa dos homens, dizia uma palavra ou outra, cá e lá, porque as mulheres não se metem em conversa de homens, entendia que o seu trabalho era servir conchas de sopa quando ela faltasse no prato de cada um. Mas, é certo que a paz das mulheres mantem-se até ao momento em que a mostarda não lhes chega ao nariz.

Manuel Patrocínio volta a entrar na conversa e com este remate do marido, Arlete não se conteve e começou logo a desbobinar por ali abaixo. Manuel, tinha apenas dito isto, «cá pra mim, é mais uma coisa que os padres inventaram pra se entreterem e sacarem mais algum da gente».

Arlete foi aos arames. Desatou por ali abaixo um rol de doutrina que eles todos ficaram boquiabertos e até perderam a vontade de continuarem a comer.

Manuel pediu a Arlete que tivesse calma. Ela ficava ainda mais exaltada, levantava a voz contra o marido, apontando o dedo para todos os presentes, chamando-os de «cabrenistas» e inimigos de Deus e das suas coisas. A ofensa foi tal, que se levantaram da mesa um a um e foram-se embora barafustando contra esta «beata maluca que o Manuel Patrocínio tem em casa». «Deus me livre de ter que conviver com uma mulher deste feitio». «O Manuel é uma joia de pessoa, não merecia isto». «Venho trabalhar com ele, é por causa dele, se fosse por causa do corisco da mulher nunca ponha os pés nesta casa». Foram-se os três embora bem sangados contra Arlete e pedindo desculpa a Manuel pelo sucedido.

Manuel do Patrocínio, agora a sós com Arlete, disse-lhe que ela tinha estragado tudo, «que a hora da refeição é sagrada, e por causa de coisas da igreja, deitaste tudo a perder. Não me parece certo».

Arlete responde-lhe «que não se importava, não tinha feito pecado nenhum, porque tinha defendido as coisas do santo e que eles é que tinham pecado porque disseram o piorio da igreja e das coisas do santo».

No meio desta trapalhada fico claro que ninguém sabia dizer o nome dos artefactos que para aí vinham alusivos a um santo. Manuel do Patrocínio deteve-se a pensar e remoendo a desfeita que Arlete tinha desferido contra os seus trabalhadores, pensava com os seus botões, «mas o que é mais importante, umas coisas distantes, mesmo que sejam de um santo ou santa, ou a vida vivida na partilha de uns com os outros? – Eu preciso destes homens para me ajudarem a remover a terra e mais do que isso preciso da sua amizade, por isso, não pode ser que coisa nenhuma de santos, mesmo que me digam serem divinas, ser mais importante que a fortuna da entreajuda e da partilha solidária entre os seres humanos».

Arlete, agora mais contida e com a clarividência do marido, anuiu que falhou e reconheceu o seu erro. Amanhã teria uma oportunidade para se redimir diante dos trabalhadores de Manuel e prometeu caprichar nas refeições. No entanto, Manuel do Patrocínio lembrou à sua compenetrada esposa devota, «se eles vierem, agora que sabem bem quem tu és, uma bela relíquia de pôr na ponta da orelha»…     

Sem comentários: