Os homens vindos «de fora» para o trabalho nos poios da Courela, que este ano estavam pujantes de uvas brancas Cercial, dispuseram-se mais ou menos à distância de metro e meio um do outro, para lançarem a enxada com todo o cuidado bem fundo para não estragarem as vides com as uvas nem se ferirem uns aos outros.
Mais um ano tinha chegado para que a
terra seja removida e aconchegada junto dos troços grossos das parreiras que
estendiam vergônteas para todos os lados de onde despendiam cachos maravilhosos
de uvas suculentas, prometendo aquele delicioso vinho Cerceal para vender aos
turistas.
No final do dia, os homens seguiam à
frente de Manuel Patrocínio em direcção à cozinha. Passaram as mãos e a cara
pela pia de pedra que estava ao canto do terreiro sempre cheia de água para
este efeito. Ninguém se senta à mesa sem lavar as mãos para comer, Arlete
ficava furibunda se tal não acontecer.
Os pratos de sopa já estavam a postos
sobre a mesa, dali espalhava-se um aroma maravilhoso que a vizinhança morria de inveja. «A
Arlete cozinhava mesmo bem», todos diziam. Os ingredientes da sopa só podiam
ser da pesada, carne de porco salgada do porco morto na última festa, feijão
bem gordinho e tenro que Arlete tinha colhido nessa tarde, olhos de couves
verdes, semilhas e batatas. Tudo resultante da lavoura daquela casa, exceptuando
a massa grossa da fábrica Insular. Arlete já tentou, mas não deu com o jeito de
fazer massa.
Sentados à mesa da ceia, falaram do
padre da freguesia que andava numa roda-viva por causa de umas coisas que
vinham à igreja, que estariam em exposição, para rezas, procissões, missas e
cada um dar a sua oferta como pudesse e entendesse.
Os três homens vindos de fora para
trabalhar bem batalhavam para ver se diziam o raio do nome dessa coisa do santo que ia
estar prá ali aquele tempo todo. Arlete e Manuel do Patrocínio também sabiam do
que se ia passar, mas não conseguiam dizer o peste do nome da coisa do santo que
vinha visitar a nossa igreja. Foram ensaiando alguns nomes, por exemplo, «coisas
ricas»; «cabelos»; «ossos»; «um pé ou uma mão»; «a cabeça»; «um dedo»… «Eles dizem um nome
pra isso, mas ninguém aqui se consegue lembrar», disse por fim Manuel do
Patrocínio.
O mais afoito dos homens, tanto no
trabalho como na língua, rematou logo. «Não ligo a essas babuseiradas, como
sabem que essas coisas pertenciam ao santo se ele já morreu há mais de dois mil
anos, se bem me lembro quando tiraram a minha mãe da cova, chamaram-me para ir ver, ao fim de
cinco anos estava tudo em pó. Não acredito em nada disso».
Arlete ouvia em silêncio a conversa dos
homens, dizia uma palavra ou outra, cá e lá, porque as mulheres não se metem em
conversa de homens, entendia que o seu trabalho era servir conchas de sopa
quando ela faltasse no prato de cada um. Mas, é certo que a paz das mulheres
mantem-se até ao momento em que a mostarda não lhes chega ao nariz.
Manuel Patrocínio volta a entrar na
conversa e com este remate do marido, Arlete não se conteve e começou logo a
desbobinar por ali abaixo. Manuel, tinha apenas dito isto, «cá pra mim, é mais
uma coisa que os padres inventaram pra se entreterem e sacarem mais algum da
gente».
Arlete foi aos arames. Desatou por ali
abaixo um rol de doutrina que eles todos ficaram boquiabertos e até perderam a
vontade de continuarem a comer.
Manuel pediu a Arlete que tivesse calma.
Ela ficava ainda mais exaltada, levantava a voz contra o marido, apontando o
dedo para todos os presentes, chamando-os de «cabrenistas» e inimigos de Deus e
das suas coisas. A ofensa foi tal, que se levantaram da mesa um a um e foram-se
embora barafustando contra esta «beata maluca que o Manuel Patrocínio tem em
casa». «Deus me livre de ter que conviver com uma mulher deste feitio». «O Manuel
é uma joia de pessoa, não merecia isto». «Venho trabalhar com ele, é por causa
dele, se fosse por causa do corisco da mulher nunca ponha os pés nesta casa». Foram-se
os três embora bem sangados contra Arlete e pedindo desculpa a Manuel pelo
sucedido.
Manuel do Patrocínio, agora a sós com
Arlete, disse-lhe que ela tinha estragado tudo, «que a hora da refeição é
sagrada, e por causa de coisas da igreja, deitaste tudo a perder. Não me parece
certo».
Arlete responde-lhe «que não se
importava, não tinha feito pecado nenhum, porque tinha defendido as coisas do
santo e que eles é que tinham pecado porque disseram o piorio da igreja e das
coisas do santo».
No meio desta trapalhada fico claro que ninguém sabia dizer o nome dos artefactos
que para aí vinham alusivos a um santo. Manuel do Patrocínio deteve-se a pensar
e remoendo a desfeita que Arlete tinha desferido contra os seus trabalhadores,
pensava com os seus botões, «mas o que é mais importante, umas coisas
distantes, mesmo que sejam de um santo ou santa, ou a vida vivida na partilha
de uns com os outros? – Eu preciso destes homens para me ajudarem a remover a
terra e mais do que isso preciso da sua amizade, por isso, não pode ser que coisa
nenhuma de santos, mesmo que me digam serem divinas, ser mais importante que a
fortuna da entreajuda e da partilha solidária entre os seres humanos».
Arlete, agora mais contida e com a
clarividência do marido, anuiu que falhou e reconheceu o seu erro. Amanhã teria
uma oportunidade para se redimir diante dos trabalhadores de Manuel e prometeu
caprichar nas refeições. No entanto, Manuel do Patrocínio lembrou à sua compenetrada
esposa devota, «se eles vierem, agora que sabem bem quem tu és, uma bela relíquia de
pôr na ponta da orelha»…
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