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quarta-feira, 27 de julho de 2022

Um dia de paz e de sabedoria na Quinta da Alegria

 
As vontades humanas, o seu engenho e arte, encrustaram na zona mais alta das serras de São Roque, no Funchal, a Quinta de Nossa Senhora da Alegria. Três andamentos de sabedoria e paz.

Reza a história assim sobre aquele lugar onde se vislumbra natureza exuberante, três edificações a começar pela capela de Nossa Senhora da Alegria. Francisco Vieira do Canto e Abreu (Funchal, 30 out. 1583; idem, 25 dez. 1636). Capitão de uma das companhias de arcabuzeiros do Funchal, era filho de Manuel Vieira do Canto e de D. Beatriz de Abreu, vindo a fundar a capela de Nossa Senhora da Alegria, em São Roque, embora viesse a ser sepultado no convento de São Francisco do Funchal. A capela passou depois aos Torre Bela, tendo sido restaurada em 1886 e benzida a 8 de Dezembro de 1887, passando a antiga proprietária Ann Constance Borger Fairlie, falecida nos Açores em 1986, algumas temporadas na quinta anexa. A quinta foi depois vendida ao Eng. Freitas Branco, que construiu a parte nova e nela habitou e, em 2020, passou a ser propriedade do escultor e pintor Francisco Simões.


Este dia 27 de julho reservou-me a felicidade de ser recebido em grande pelo seu atual proprietário, o meu bom e estimado amigo escultor Francisco Simões.

No meio da natureza exuberante, saboreamos a desmedida alegria do anfitrião que se desmancha em simpatia e sorriso contagiante. O seu entusiasmo é cativante e começa a guiar-nos como um enviado dos céus, alertando para os detalhes religiosos, o valor artístico de cada peça, todo espaço envolvente repleto de árvores, flores, árvores fruto e todo o género de plantas. Um manancial que preenche cerca de doze mil metros, que oferece ao interior de quem busca a beleza um encanto retemperador.


A visita começa na exígua e vetusta capela dedicada a Nossa Senhora da Alegria, onde se nos desvela um retábulo muito interessante com a imagem de Nossa Senhora e o Menino ao colo. A mão direita de Maria oferece ao menino uma maçã dentada, símbolo do pecado que entrou no mundo por uma outra mulher, Eva. Maria a nova Eva oferece ao Menino Jesus o símbolo do pecado e da perdição da humanidade, pois Ele é o redentor e o salvador da humanidade. Se por uma mulher, Eva, entrou o pecado no mundo, ao dar a dentada no fruto proibido, a maçã, por outra mulher, Maria de Nazaré, entra a redenção e salvação de toda a humanidade.

A visita continua e vamos à casa mãe, a casa original da quinta da Alegria. Maravilhosamente restaurada e apetrechada com encantador mobiliário antigo e como não poderia deixar de ser, uma autêntica «galeria de arte», com quadros e estátuas do proprietário da Quinta, o escultor Francisco Simões.

Miguel Torga


O terceiro momento ficou reservado para a habitação e atelier do escultor, a parte nova da Quinta, onde tem sido moradia dos últimos proprietários. Neste espaço podemos nos deslumbrar com a paisagem verdejante que se impõe como presença incontornável. Os diversos compartimentos estão repletos de estátuas, cada uma mais bela que a outra, imagens, quadros com os desenhos das estátuas e obras de arte espalhadas por Portugal Continental e pelo mundo fora. Saltam aos olhos, os cerca de cinco mil livros sobre arte, cuja maior parte tem participações do escultor Francisco Simões. Tudo são preciosidades que nos falam e nos encantam o olhar da alma em sentida devoção e comoção. 


Não podia ser melhor o propósito do Evangelho deste que dia, tirado de São Mateus, que nos relata que um homem encontrou um tesouro escondido num terreno, ficou tão contente que vendeu tudo o que tinha e comprou esse terreno. Outra parábola no mesmo relato diz que um negociante que procura pérolas preciosas, ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola. É bem o que me apetecia fazer se estivesse um gesto deste ao meu alcance.

As serras de São Roque escondem um tesouro e uma pérola de grande valor. Para nosso desgosto e mais ainda do dono deste tesouro, pessoa de renome nacional e internacional, que embora não sendo natural da Madeira, ama a nossa terra, deixou tudo e tanto para trás, meteu tudo isto em contentores e rumou para a ilha da Madeira. Nada melhor podia nos ter acontecido. Uma graça que não encontrou aliados, melhor, encontrou desinteresse, indiferença e pior que tudo alguma zombaria porque devem considerar quem assim procede como um louco, um lunático que se guia pela inutilidade da arte.


Francisco Simões está desgostoso e mais uma vez desencantado com o desprezo e indiferença que encontrou na ilha. Por isso, está novamente de armas e bagagem quase prontas para rumar a outras paragens, onde possa encontrar outros «loucos», que se alimentem daquilo que entre nós se considera «inútil». Sim, porque na nossa terra «útil», é o pão e o circo permanente, mesmo que passado o efeito nada fique senão a miséria que o esgoto engole. Os rios de dinheiros públicos que se gastam em ramboiadas, podiam muito bem servir para ser investido em arte, cultura, sabedoria e em tudo o que são valores que a traça não rói e que nenhuma contrariedade do tempo e do modo possa diluir.


É com muita pena que vejo este tesouro não ser valorizado pelas autoridades regionais. As nossas escolas aqui podiam ter um campo magnífico para ensinarem a contemplar a arte, a cultura, a natureza… Melhor lugar não se encontraria para sair dos caixotes das salas de aulas tantas vezes secantes como testemunham os alunos. É muito triste que ninguém tenha aproveitado a disponibilidade daquele espaço e a sabedoria do seu proprietário. O seu desencanto trouxe-me a pensar cheio de tristeza na viagem de regresso.    

E concluo assim, a traça corrói a madeira. A pobreza de espírito corrói a ilha da Madeira.

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