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segunda-feira, 17 de maio de 2021

Somos a carne dos nossos lugares

É o piso onde se segura o pé, os caminhos empoeirados, o pó que eu respirava sem forma de fugir dele quando passavam os carros vazios ou cheios de carga para a venda no Mercado dos Lavradores. Esse quadro bucólico ou romântico como alguma literatura pode fazer crer, só trazia sofrimento e angústia. Mesmo assim tantas vezes ouvia gargalhadas de prazer, mas outras vezes lamentos doridos pelo cansaço e pela doença mal tratada pelas maquinações da pobreza.

São esses tempos que me perseguem, porque bebia água que vertia as fendas das rochas basálticas de ambos os lados das ribeiras. Não sabia o que era «água imprópria para beber». Mais tarde, muito mais tarde fizeram-me essa advertência e ensinaram-me esse qualificativo para a minha saúde, mas só muito tempo depois de já ter consumido muita água mesmo sem esse qualificativo científico tão religiosamente venerado nos tempos de hoje.

Nesse tempo não caía em armadilhas inesperadas como as que caio agora. Era tão puro e tão inocente que considerava a maldade de outra ordem, não tinha tantas consequências nocivas. Assim como antes, hoje tenho frio e calor. Tenho excesso de fome, não a fome de pão, mas fome daquela ordem do bem, da verdade e da justiça. E não falta a advertência, segundo dizem, os entendidos da saúde e da imagem ideal, que tenho excesso de gorduras.

Fiquem sabendo, vivo nesta carne que somos nós, corpo que veio do pó da terra e ao pó há de voltar, é animal, é vegetal, é banhado de mar e tão fortemente humano o lugar da minha esperança. Tenho dito.

Uma esperança de pequenas coisas, pequenos gestos capazes de revolver os poios que abandonamos impiedosamente. Hoje eles choram saudade no coração da gente. Estão lá perdidos, sem paredes, mas com a mesma terra coberta de ervas e infestantes que vieram do mistério do mundo. Neste emaranhado de crueldade, lembro-me daqueles nomes de tantos lugares que eu pisava, mas que eu nunca mais vi nem eles me viram. Só regresso a eles pela memória. Eles são a Courela, a Courelinha, a Manga, a Manguinha, a Moita do Pestana, as Moitas da Cova, o Poio do Pestana, o Poio do Alegre, a Manga do Alegre, o Poio do Poço, a Banda do Moiro, o Poio Abaixo do Caminho, o Poio do Caminho, o Poio do Lombo, o Poio do Lombinho, o Poio da Pereira Cabaça, o Poio da Cerejeira Grande, a Terça, o Chote, os Poios do pé da Porta e etc… Foi este chão que pisei primordialmente e foi nele que saboreei o pão da esperança no sentido mais genuíno do termo.

Sem querer contrariar nada deste agora que os entendidos me oferecem cheio de qualidades, o mais certo é que eu ainda me vejo na mesma carne, é nela e dela que eu vivo. Esta esperança de pequenas coisas, em pequenos gestos capazes de revolver a terra seca e infértil em que nos tornamos, para fazer voltar carne e ternura aos corações de pedra que construímos. Por isso, precisamos de crianças educadas, letradas, que gostam de ler e de escrever, para que se tornem adultos honestos, que não vivam além da ganância e da concorrência desleal ou numa competição desenfreada sem sentido nenhum. Bate o toque da esperança no fim da produção de armamentos, que continuam a matar pessoas e a destruir o meio ambiente que nos rodeia, este chão que somos, e pisamos há muitos e muitos anos.

Somos capazes de coisas boas. E ainda sobram tantas coisas boas. Penso não estar fora do meu chão e vivendo no ar, ao sentir e anunciar isto. Eu sinto e muitos comigo também o sentem. Esperar no chão onde parece não haver esperança é próprio da nossa condição. Não desistir também o é. A mesma terra que rasga o impossível esconde o possível. Bastará um querer que seja resiliente diante da aparente infertilidade.  

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