A poesia de Pessoa é um diagnóstico espiritual que cartografa com exactidão não só as aspirações, mas também o profundo sentimento de perda que atravessa a Modernidade. A marca da cultura moderna não reside, ao contrário do que se diz, na ausência do sentimento religioso, da ética ou da estética. O que caracteriza a Modernidade, mais do que o vazio, é um extravagante excesso, mas sob um regime novo: o da radical autonomização que confere à cultura e ao homem um perfil estilhaçado. A partir de agora flutuamos como fragmentos de uma unidade perdida e inalcançável, e como sujeitos organizamo-nos entre orfandade e ficção.
No início do “Livro do Desassossego”, essa espécie de diário da nossa alma moderna, Fernando Pessoa (perdão, Bernardo Soares) avança as coordenadas epocais em que se situa, em que nos situamos: “Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, por que o espírito humano tende naturalmente para criticar por que sente, e não por que pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem... Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade… Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, por que se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstracção do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, fi cava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida”.
Porém, a “contemplação estética da vida”, só por si, é insuficiente como motor e sentido de uma existência. Esta entra demasiado depressa, como o poeta reconhece, num inverno inclemente e gelado. Por isso escreve: “Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos?”. E é aqui, no profundo drama da condição humana, na sua radical exposição, que se insinua a nostalgia de um Deus verdadeiro, em inesquecível diálogo com a parábola do filho pródigo (Lucas 15, 11-32): “Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição… Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar…”.
José Tolentino Mendonça, SNPC 14.04.10
3 comentários:
Padre José Luís, prefiro sentir a ausência de Deus do que senti-lo como um imbecil que não me dá autonomia suficiente e que estorva -me permanentemente, de tal maneira que estou sempre acorrentado a Ele. O Deus de Jesus Cristo quer homens e mulheres livres e não submissos a ninguém. Ele criou-nos para que nós completássemos a sua Obra através da R%ecriação. Sentir a orfandade de Deus é estar em constante busca pela sua Existência. Nós somos outros e outras DeUS: PAI e MÃE como nos deixou esse legado o Bondoso Papa João Paulo I. Ele qauer-nos perfeitos, mas cuidado! Com esta perfeição Já dizia Fernando Pessoa: Senhor livra-me de mim. Só o DEUS DO AMOR é que nos deu autonomia suficiente para edifar-mo-LO na Fraternidade, Igualdade e Liberdade.
Amigo, José tire um tempinho e vem vistar meu blog. Isso seria uma honra para mim. João Joaquim martins.
Obrigado pelo convite, já irei ao seu blog...
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