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quarta-feira, 27 de abril de 2011

CARTA DE FREI BETTO AO PAPA JOÃO PAULO II

Nota: Esta Carta do frei Betto ao Papa foi publicada na “Folha de São Paulo”, no dia 05.10.1997, por ocasião da última visita do Papa João Paulo II ao Brasil. Esta carta já tem algum tempo, mas reveste-se de uma actualidade muito grande, porque os temas que aborda ainda não tiveram uma resposta adequada da ortodoxo Igreja. Por isso, tem o mérito de nos pôr a reflectir neste contexto da beatificação do Papa João paulo II. A propaganda à volta disso será imensa, como já se vislumbra...
Vós chefiais a Igreja na qual dedico minha vida à proposta de Jesus. Sois o sucessor de Pedro. Tendes outros títulos. Não me agradam. “Vossa Santidade” soa-me impróprio à nossa comunidade de pecadores. “Sumo pontífice” era pagão antes de ser cristão. O imperador Otávio Augusto, que reinava quando Jesus nasceu, adotou essa denominação honorífica.
Vossa imagem desenha-se, a meus olhos, diferente daquela que os Evangelhos retratam de Pedro. O chefe dos apóstolos era casado, pois Jesus curou-lhe a sogra. Sois celibatário e não permitis que o celibato volte a ser, na Igreja Católica, um carisma distinto do carisma do sacerdócio. Nos Evangelhos, é proeminente a presença de mulheres ao lado de Jesus: Maria de Nazaré, Maria Madalena, Joana, Susana, Maria, mãe de Cléofas; Salomé, mãe de Tiago e João; e várias outras.
Onde estão as mulheres do grupo do papa? Como se chamam? Por que, tendo Deus criado homens e mulheres à sua imagem e semelhança, são elas impedidas de acesso ao sacerdócio, ao episcopado e ao papado?
Sois um homem de coração à esquerda e cabeça à direita. Não vos agradam a Teologia da Libertação e as inovações suscitadas pelo Concílio Vaticano 2º. Ah, que grande alegria se o vosso pontificado canonizasse o papa João 23!
Exigistes do presidente Fernando Henrique Cardoso, em Roma, empenho na reforma agrária. Ao presidente Sarney dissestes que “no Brasil não haverá democracia enquanto não houver reforma agrária”. E agora, ao chegar ao Brasil, denunciastes as desigualdades sociais e citastes os sem-terra.
Tivestes a humildade de, em nome da Igreja, pedir perdão pela equivocada condenação a Galilei Galileu. Por que não vos permitiram receber no Rio famílias de sem-terra? Haverá no futuro um papa que reconheça como certos cardeais romanos foram duros com Leonardo Boff e Ivone Gebara?
Viestes ao Rio tratar da família. Sabeis que a família monogâmica, patriarcal, branca e europeizada é um entre tantos modelos. Qual o modelo cristão? Minha amiga Dora, favelada do ABC, que era surrada toda semana pelo marido alcóolatra e, hoje, refaz sua vida afetiva com Luiz merece ser considerada família?E por que lhes é vetado o acesso aos sacramentos? Julgais que Deus, em sua bondade, nega ao casal o sacramento maior da compaixão? E meus amigos Renato e Lúcio, que vivem juntos e comungam seus afetos, seriam aos olhos do pai de amor uma família? “Deus é amor”, proclama o Novo Testamento.
O amor é o maior dos mandamentos. E por que meu amigo Cláudio, tetraplégico, não pode merecer a bênção matrimonial em suas núpcias com Teresa? Quis o Criador que, nos animais, coito e procriação não diferissem. Quis também que entre o homem e a mulher a atração seja transfigurada em ternura, o afeto em carinho, o toque em comunhão de corpos e de espíritos. Toda essa liturgia que faz do erotismo ágape é um pecado, se não há intenção de procriar? Sabíeis que o Brasil é o terceiro país do mundo em casos de Aids? Porém Roma não admite que se usem preservativos. A disseminação da morte não seria algo muito mais grave que o prazer do sexo estéril? E por que não condenais a fabricação e o comércio de armas, bem como a pena de morte, com a mesma veemência com que abominais o aborto? Pena que a vossa visita seja tão breve a este país. Quisera convidar-vos a conhecer as Comunidades Eclesiais de Base, nas quais Jesus é tão vivo na fé e na esperança dos pobres. Pudesse, levar-vos-ia também às igrejas evangélicas em que a palavra de Deus povoa corações e a vossa figura é apreciada. Depois, aos terreiros de candomblé, nos quais negros e brancos celebram uma liturgia mística que torna as pessoas mais generosas e solidárias. Veríeis também os ritos indígenas que varam a noite e, ao som de flautas e tambores, evocam a sacralidade da natureza como expressão do Criador. Essa gente, meu pastor, traz na mente e no sangue tanto sincretismo quanto os cardeais romanos.
Pois não é verdade que o modelo de igreja romano traz marcas visíveis de influências pagãs e judaicas? O governo dos césares não teria incutido em alguns de nossos prelados o gosto de ser chamados “príncipes da igreja” e habitar em palácios? Por que não retornar à simplicidade de Jesus, ao despojamento dos apóstolos, à pobreza evangélica?E, antes de deixardes o Brasil, quão felizes ficaríamos todos com a visita de Pedro à pedra sobre a qual se ergue a Igreja Católica no Brasil nesta Segunda metade do século d. Hélder Câmara, o profeta.
Frei Betto, 53 anos, é frade dominicano, assessor da Pastoral Operária do ABC e da Central de Movimentos Populares e consultor do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra).

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