Apontamento 4
A hora da reunião tinha chegado, foram entrando um
atrás do outro como cordeiros a entrar no redil ou para o matadouro. Entraram
cabisbaixos e sorumbáticos. Ao centro da sala faziam uma breve paragem e
vergavam ainda mais as cabecitas pendidas para o lado direito - para esquerda é
que não, vade de retro Satanás - e saudavam reverentemente o querido líder.
Todos abancados nos cadeirões do século XVIII,
colocavam os braços sobre a longa mesa e sem piar não moviam por nada as santas
cabeças. Ali ficavam como seres inanimados para que nenhum sinal ou gesto
viesse perturbar-lhes os bons agrados que prometeram impreterivelmente levar
a cabo como condição da sagrada função. São seres tristes que se menorizaram e
deixaram morrer para o mundo o pensamento próprio para dar lugar à divindade
que criaram, que no seu entender se rebola de prazer com pias devoções e
patéticos circos religiosos… Há um silêncio sepulcral que invade a santa cela
interdita aos malvados réprobos, por exemplo, os que também dizem não às vezes.
Todos de rosto sério para ali ficaram enfiados nos
panos da vaidade recebidos ao preço da anulação do cérebro. Temos então um
quadro negro onde só um é rei e pode falar tudo o que lhe apeteça sem
contestação. Os restantes, em verdade vos digo, como dizia Camilo Castelo
Branco aos portugueses: «uns alentados canalhas salpicados de brasões», mas
pouco ou nada úteis à libertação das cegueiras do mundo e da existência.
No canto mais recôndito daquele reduto ancestral,
espertou o estrouvinho do velho, que depois de ter aplacado as agonias
flatulentas das martirizadas tripas daquela seca que passava ventosa vinda das
terras dos mouros, bocejou com ares de aliviado. Todo o homem tem mais amor ao bem-estar
do corpo do que à honra.
Após o sermão os papelinhos amarelecidos e mal cheirosos
de rançosa naftalina passaram pelas mãozinhas delicadas, onde colocaram uma
cruzinha, a lembrar a sacra cruz do Senhor, de tinta azul como o céu à frente da
palavra sim. Só tinha a palavra sim no papelito, porque o negativo (não) sendo coisa do
demo, não entra nestes negócios. Desta forma ficou feito que devia morrer, o
coitado do «padre santo». Por causa desta influência de religiosos acéfalos, o
Rei D. José teria proibido as cheganças (danças lascivas do XVIII), como se
depreende da quadra que ficou para contar a nossa história: «Já se não cantam
cheganças, / Que não quer o nosso rei, / Porque lhe diz Frei Gaspar / Que é
coisa contra a lei».
Mais ainda rezam as crónicas, que deve ter havido aqui
mãozinha de Frei Gaspar da Encarnação, a quem Camilo Castelo Branco,
respeitosamente, denominou de «uma santa besta». E assim, como dizia
lucidamente o saudoso Padre José Manuel Freitas, «é preferível fazer sabiamente
o papel de tolo do que tolamente o papel de sábio». É difícil, mas não é de
todo impossível repararmos que todos os dias a vida está cheia de ardilosos manhosos
que tolamente mascarados de sábios nos tomam por patetas.
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