As mãos deslizam debaixo do pisão com mestria e agilidade extraordinária. Neste quadro aparentemente dramático, só o trigo se contorce de dor, esteve de molho desde o dia de ontem, agora colocado na pia de pisar, levará umas pancadas valentes com o pisão, pedra arredondada enfiada na ponta de um pau de madeira (o cabo) onde seguramos para ir a cima e abaixo, e, assim, cai o pisão, ora devagar ora rápido, para que o trigo não salte de dentro da pia para fora ou não fique esmagado. As mãos que trabalham dentro da pia vão ordenando o ritmo. Este trabalho da avó era brilhante e provocava-me o maior dos espantos.
As suas mãos circulando dentro da pia a mexer o trigo de forma ritmada sem medo das pancadas do pisão que cai sobre o trigo, mas que não toca nas mãos.
Este trabalho da pisa do trigo era feito com muita frequência na casa da avó. Um trabalho extraordinário, muito longe dos tempos modernos, que já nos vende nos supermercados o trigo debulhado de forma mecânica. Face a estas facilidades actuais, sempre faz reminiscência aquele trabalho que em pouco tempo nos debulhava em suor e arfava o peito de cansaço para conseguir descascar o trigo. E que sopa maravilhosa vinha dali. As mãos da avó trabalhavam debaixo do pisão a virar e a revirar o trigo para que nenhum manhoso ficasse com a casca ou então, pior ainda, se esmagasse o melhor do trigo no fundo da pia, que era duro e carcomido pelo tempo e pelas pancadas das imensas pisagens que ali já foram feitas.
Este ritual da debulha do trigo era encantador. Normalmente, realizava-se durante as manhãs para ser cozinhado para a hora da ceia - ceia sim - porque nesse tempo jantávamos pão e café pelas quatro horas da tarde. A ceia era tragada pela noite no fim da jornada de trabalho intenso na agricultura, depois da terra revirada pela impiedosa inxada e o gado atestado e aconchegado no palheiro. Esta vida tinha o ritmo do sol e não se dominava com o stress das agendas e com a escravatura dos horários. Tudo tinha um sabor a tempo.
Acabado o momento da pisa do trigo, ficava esse néctar, espalhado a secar ao sol, depois de feita essa secagem as mulheres escolhiam o melhor sítio com a devida direcção do vento para ser joeirado, isto é, as mãos enchiam-se de trigo e eram levantadas ao mais alto possível, as cascas do trigo, eram levadas pela brisa para um canto, o alimento como era mais pesado caía no sítio certo. Já sabemos qual seria o seu destino.
Técnicas rudimentares, mas cheias de sabedoria, em nome da sobrevivência.
José Luís Rodrigues
2 comentários:
Maravilhoso este relato...tudo era feito com tempo...e com encanto...
Havia uma comunicação com as coisas...as mãos da avó...o pisão... e o trigo... e havia a sinfonia dos dias que se perdeu...
Abraços
Graça
Ternos, santos e familiares tempos, em que tudo girava sobre as lidas: a da casa, a do campo, a da oração também. Sábias e lestas mãos que tudo faziam, do pisar o trigo, do amassar, amanhar a terra e pontear o tecido mais fino ou o bordado Madeira mais alvo! A sopa de trigo ainda se faz-vende-se o trigo já pronto, é só deitar de molho e na panela misturar a sopa e o tempero. Não é a mesma coisa mas...E porque acho delicioso este texto, vou-lho roubar para o meu blog. Abraço
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