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terça-feira, 6 de março de 2012

O direito ao delírio

No século vinte e um,
se ainda estamos aqui,
todos nós seremos gente do século passado
e, pior ainda, seremos gente do milênio passado.
Ainda não podemos adivinhar o tempo que será,
sim que temos, ao menos, o direito de imaginar
o que queremos que seja.
As Nações Unidas proclamaram
extensas listas de direitos humanos,
mas a imensa maioria da humanidade
não tem mais que o direito
de ver, ouvir e calar.
Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado
direito de sonhar?
Que tal se deliramos por um tempinho?,
ao fim do milênio,
vamos fixar os olhos mais além da infâmia
para adivinhar outro mundo possível:
O ar estará limpo de todo veneno que não venha
dos medos humanos e das humanas paixões.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel,
nem serão programadas pelo computador,
nem serão compradas pelo supermercado,
nem serão assistidas pelo televisor.
O televisor deixará de deixar de ser
o membro mais importante da família.
As pessoas trabalharão para viver,
em lugar de viver para trabalhar.
Se incorporará aos códigos penais
o delito de estupidez,
que cometem os que
vivem para ter ou para ganhar,
em vez de viver
por viver e só.
Como canta o pássaro,
sem saber que canta,
e como brinca a criança,
sem saber que brinca.
Em nenhum país irão presos os rapazes
que se neguem a cumprir o serviço militar,
mas os que queiram cumpri-lo.
Os economistas não chamarão nível de vida
ao nível de consumo;
nem chamarão qualidade de vida
à quantidade de coisas.
Os cozinheiros não mais acreditarão
que as lagostas adoram que as fervam vivas.
Os historiadores não acreditarão mais
que os países adoram ser invadidos.
O mundo já não estará em guerra contra os pobres,
mas contra a pobreza.
E a indústria militar não terá mais remédio
que declarar-se falida.
A comida não será uma mercadoria,
nem a comunicação um negócio.
Porque a comida e a comunicação
são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome,
porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas
como se fossem lixo,
porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas
como se fossem dinheiro,
porque não haverá crianças ricas.
A educação não será o privilégio
dos que possam pagá-la,
e a polícia não será a maldição
de quem não pode comprá-la.
A justiça e a liberdade,
irmãs siamesas,
condenadas a viver separadas,
voltarão a juntar-se,
voltarão a juntar-se bem grudadinhas,
costa contra costa.
Na Argentina, as loucas da praça de maio
serão um exemplo de saúde mental,
porque elas se negarão a esquecer
os tempos da amnésia obrigatória.
A perfeição,
a perfeição continuará sendo
o aborrecido privilégio dos deuses.
Mas neste mundo,
neste mundo desajeitado,
cada noite será vivida
como se fosse a última,
e cada dia como se fosse o primeiro.
...
Eduardo Galeano
In Patas Arriba, Buenos Aires, dezembro de 1998.
...
Nota: Um texto imperdível face à actualidade que retrata e quanto à mensagem extraordinária que nos desafia na construção de um mundo mais justo.

2 comentários:

Alberto Couto Filho disse...

Abençoamada,

Paz
Bela mensagem a nos chamar à reflexão.
Capitular a estupidez no código penal é o máximo.
Deliremos
Alberto

José Luís Rodrigues disse...

Obrigado Alberto por ter vindo ao Banquete, já fui ao Blog do Alberto e fiquei. Abraço fraterno.