Miguel
Carvalho
Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um
pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo
Criancinhas
A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a
da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos.
Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela
incha.
A criancinha quer camisolas adidas e ténis nike. A gente dá porque
a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser
diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a
ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de
conta e o berreiro continua.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou
mulher.
Desperta.
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada,
semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da
moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por
isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de
convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e
tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles
estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e
numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia
o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por
casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e
não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco
minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e
umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de
violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados
com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre
a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e
espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em
paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será
criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do
salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para
aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das
escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão
ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das
criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para
nos entretermos.
Artigo publicado na revista VISÂO
online
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