«Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar».
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar».
«Ode Marítima», Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Quem
me dera ter o engenho e a arte de um Vitorino Nemésio, para tecer nesta hora um
enredo mais ou menos sublime como o dele no «Mau Tempo no Canal»… Não. Falta-me
essa sabedoria literária e esse enrodilhado magistral para saber escrever desse
jeito. Repare-se: «Outra vez interessados pela sombra maciça do Canal, ficaram
à janela espiando. Mas o silêncio de tudo - casa e tempo parecia ganhá-los para
alguma coisa de profundo e de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade
e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os
sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna. Roberto retomara
o passeio sem fim no soalho velho, sugara o cachimbo apagado, desaparecera para
os lados do seu quarto. Margarida, à luz do candeeiro americano, marcava o
ritmo do petróleo com o pique da agulha no bordado. Uma pomba de filosel
repetia o seu corpo esquemático e o seu raminho no bico ao largo de uma tira de
pano riscada a papel químico». Muito bom.
Mas, roubado o título para devidamente ser adaptado ao momento, voltemos ao assunto, escarrapachado aqui à nossa idiossincrasia e
de acordo com o nosso modo de ver a medida das coisas. O tema está mais que
lançado. Está junto do Monte Gordo, onde descansa a Virgem da Piedade um
ano inteiro até à hora da romaria que a transporta para a Igreja Paroquial do
Caniçal para assinalar a sua festa/romaria anual.
Pelo meio desse devotado dever celestial, mete-se o baloiçar das águas entre o Porto do Caniçal e o Porto de abrigo da Quinta do Lorde. Mas, este ano meteu-se também, para ficar conhecido o barco de
pesca «O mal-Amanhado», que é o barco eleito para transportar os senhores
governantes, o da Quinta Vigia, o Presidente do Governo Regional da Madeira e
os inquilinos da Câmara do Funchal e de Machico. Mas, na última hora não deu,
porque meteu-se um telefonema vindo do além a dizer que no «Mal-Amanha» não
cabe tanto «mal-amanhado» tratando-se de governantes de cores partidárias diferentes. Toca alguém ter que desamparar a loja, perdão, o barco.
O
mais interessante de tudo isto, é que a azáfama do fim de semana tinha-nos reservado como sempre a normalidade habitual, pois estaríamos longe que nos deparassem um manjar tão suculento e especial para saborearmos quando terminasse a sobrecarga de tarefas que todos os fins de semana nos trazem.
Como se pode ver claramente, personagens e
lugares a condizer não faltam para saltar daqui um enredo igual ou melhor ainda
do que o de Vitorino Nemésio. A Virgem da Piedade, os presidentes que não cabem
no barco «Mal-Amanhado», os mordomos mais papistas que o papa, o telefone que
toca, os desmentidos, os comunicados, os barcos com os nomes característicos a
começar pelo «Mal-Amanhado», a Quinta do Lorde, o Lombo Gordo, o mar e a bambaleante travessia que chamam de procissão. Obviamente, que daria um bom ou mau
tempo no canal, mas dado que estamos em período de campanha eleitoral,
chamemos-lhe «Mau tempo eleitoral mal amanhado».
Por isso, ficou triste este mau tempo eleitoral, antes fossem relâmpagos, raios, trovões a ribombar, ondas grandes e fortíssimas,
o vento forte e frio com nuvens negras e chuvosas...
Nada disso, vimos mau tempo eleitoral mal amanhado,
que não respeita nada. Mas antes se consome em ciúmes patéticos, brigas de
lana-caprina que não interessa a ninguém. Uma guerra de protagonismos medíocres
que se aproveitando de uma romaria que devia ter como único protagonista o povo
que soube manter a tradição ao longo destes anos todos sem que os poderes
temporais viessem dar uma mão. Vão fazer política partidária no vosso terreiro. Baloicem
os vossos egos nos locais que vos estão destinados. Não venham fazer de uma
romaria que pertence ao povo, feita sobre barcos que naquele dia se abrem para
todos, sem fazer acepção de pessoas e ainda mais distribuem cervejas e
deliciosas castanhêtas - é um peixinho pequeno delicioso quando frito bem estaladiço, porque cada um dos peixes tem mais espinhas que todos os cardumes do mar juntos. É a melhor procissão que se faz nesta terra. Há
comes e bebes durante aquela travessia por mar. Já participei e gostei.
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