Há tantas coisas entre nós que se encaixam
perfeitamente na designação do Papa Francisco, a «espiritualidade da miragem».
Que logo depois o Papa define da seguinte forma, como sendo uma tentação: «podemos
caminhar através dos desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente
existe, mas o que nós gostaríamos de ver; somos capazes de construir visões do
mundo, mas não aceitamos aquilo que o Senhor nos coloca diante dos olhos. Uma
fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas, permanece árida e, em vez de
oásis, cria outros desertos» (Homilia do Papa Francisco na missa de
encerramento da, XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 25
-10-2015).
Mas há mais que nos faz pensar e que vem
de encontro aos desvios das nossas atenções. Acrescenta mais esta tentação: «Há
uma segunda tentação: cair numa «fé de tabela». Podemos caminhar com o povo de
Deus, mas temos já a nossa tabela de marcha, onde tudo está previsto: sabemos
aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos e
qualquer inconveniente perturba-nos. Corremos o risco de nos tornarmos como ‘muitos’
do Evangelho que perdem a paciência e repreendem Bartimeu. Pouco antes
repreenderam as crianças (cf. 10, 13), agora o mendigo cego: quem incomoda ou
não está à altura há que excluí-lo. Jesus, pelo contrário, quer incluir,
sobretudo quem está relegado para a margem e grita por Ele. Estes, como
Bartimeu, têm fé, porque saber-se necessitado de salvação é a melhor maneira
para encontrar Jesus».
Ao mesmo tempo que lia e rezava estas
palavras, a rádio dava-me conta que em São Marinho se continua a
trabalhar arduamente para conseguir verba para erguer uma estátua a São
Martinho. Não se duvida nada que a figura merece, pois é dele que se conta a
seguinte lenda.
Num dia frio e chuvoso de inverno,
Martinho seguia montado a cavalo quando encontrou um mendigo. Vendo o
pedinte a tremer de frio e sem nada que lhe pudesse dar, pegou na espada e
cortou o manto ao meio, cobrindo-o com uma das partes. Mais à frente,
voltou a encontrar outro mendigo, com quem partilhou a outra metade da capa.
Sem nada que o protegesse do frio, Martinho continuou viagem. Diz a lenda
que, nesse momento, as nuvens negras desapareceram e o sol surgiu. O bom
tempo prolongou-se por três dias.
Na noite seguinte, Cristo apareceu a
Martinho num sonho. Usando o manto do mendigo, voltou-se para a multidão de
anjos que o acompanhavam e disse em voz alta: «Martinho, cobriu-me com esta
veste».
A figura merece muitas estátuas e já
haverá muitas em todo o mundo, porque a devoção a São Martinho é grande e
universal. Porém, entre nós a lembrança de se levantar uma estátua extra muros
da Igreja de São Martinho começa a gerar alguma suspeita. No primeiro anúncio
custaria cerca de 30 mil euros, agora já ascende a 100 mil euros e mais
acrescentam neste segundo anúncio servirá para homenagear os heróis e as
vítimas do 20 de Fevereiro de 2010.
Estão a gozar connosco ou a tomar por brincadeira
um acontecimento que vitimou tanta gente, feriu e matou pessoas, desalojou
famílias inteiras e algumas delas ainda não foram devidamente ressarcidas pelas
perdas que tiveram. As que já estão mais ou menos restabelecidas passaram das
boas, mergulhadas em burocracia e a bater em todas as portas do mundo para que pudessem
ver luz ao fundo do túnel. Pretendo dizer que as ajudas que tiveram resultaram de
muitos sacrifícios, dores e lágrimas.
Só pode ser por brincadeira associar a
estátua de São Martinho a uma situação tão grave que se viveu entre nós resultante
da bravura da natureza. Se não for um tremendo equívoco então estamos perante
um aproveitamento da desgraça alheia, para ganhar simpatia e fazer com que as
bolsas dos madeirenses se soltem facilmente para rechear o bolo dos
escandalosos 100 mil euros que esta estátua parece vir a custar. Hummm… Será
que há gato escondido com o rabo de fora?
Deixo mais esta questão: será que todas
as pessoas que foram vítimas do 20 de fevereiro já foram devidamente ajudadas
para retomarem as suas vidas com normalidade e todas as famílias que ficaram sem
casa já estão realojadas?
E por fim este desejo.
Esperemos que as freguesias todas da Madeira não se lembrem de erguer estátuas
aos oragos, todos seguramente merecedores de tão elevada distinção. Se assim
for as cada vez mais magras carteiras dos madeirenses vão ter que arrotar.
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