Melhor não encontro para dizer sobre o estado de violência em que estamos mergulhados...
A primeira razão por que a
violência maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela
falamos apenas da ponta do icebergue. Nós acreditamos que estamos perante
fenómenos de violência apenas quando essa tensão assume proporções visíveis, quando
ela surge como espectáculo mediático. Mas esquecemos que existem formas de
violência oculta que são gravíssimas. Esquecemos, por exemplo, que todos os
dias, no nosso país, são sexualmente violentadas crianças. E que, na maior
parte das vezes, os agressores não são estranhos. Quem viola essas crianças são
principalmente parentes. Quem pratica esse crime é gente da própria casa.
Nós temos níveis altíssimos de violência doméstica, em particular, de violência
contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se
disso em algumas ONGs, em alguns seminários. A Lei contra a violência doméstica
ainda não foi aprovada na Assembleia da República.
Existem várias outras formas invisíveis de violência. Existe violência quando
os camponeses são expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e
não possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violência contida
quando, perante o agente corrupto da autoridade, não nos surge outra saída
senão o suborno. Existe, enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo.
E existe essa outra violência maior que é considerarmos a violência como um
facto normal. Existe, em suma, essa terrível aprendizagem de negarmos em nós
mesmos tudo que nos ensinaram como valor humano: o ser solidário com os outros,
os que sofrem.
Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'
Sem comentários:
Enviar um comentário