Esta entrevista é muito bonita. O mistério é o que nos abraça e isso basta... Paz à sua alma. Não deixemos de seguir o seu exemplo. «Quando há qualquer coisa que nos diz, vai... Quando ouvir a voz para fazer, faz...» Eis um hino à vida e ao sentido da missão em que deve estar convertido o que fazemos neste mundo. nenhuma forma de morte vencerá vencerá a vida, porque o mistério é a imensidão que vencerá todas as limitações. Uma entrevista imperdível e que se deve guardar religiosamente.
Pensamentos emblemáticos. Contra todo o esquecimento… Para serem pensados, rezados, seguidos e vividos...
João Lobo Antunes: 11 reflexões sobre a vida, a
doença e a morte
27/10/2016, In Observador
A vontade de viver “uns anos mais”
Quando olho para a minha vida, diria que o futuro
sempre me aconteceu, e eu não dei por isso. Nunca tive uma meta (…) Portanto,
quando dava por isso, o futuro já cá estava. De maneira que estou tranquilo.
Queria ter uns anos mais, queria ter uns anos mais.”
O medo de perder a memória
No balanço entre as coisas que recordo e as que
procuro esquecer ficam sobretudo aquelas em que me afastei de mim próprio, da
minha razão de ser. Em que não fui fiel a mim próprio. Essas são irreprimíveis.
Tive ocasião de ser eu próprio operário dessa transformação e de perceber como
a doença trata a memória das pessoas. As pessoas sem memória são navegadores
sem bússola. É das maldições piores que existem.”
Treinado para resolver problemas
Um primeiro-ministro inglês do princípio de século XX
dizia que a democracia era o governo pelo diálogo, mas para que funcionasse era
necessário que se calassem. O diálogo não pode perpetuar-se sempre, a certa
altura é necessário chegar a conclusões. Pessoas como eu, que foram treinadas
para resolver problemas, sabem que há uma altura em que é necessário levar as
pessoas a fecharem conversas.”
A transformação pela doença
Há anos escrevi que não se pode dizer com os olhos
aquilo que se nega com a palavra. Diria que foi a experiência da doença que me
tornou mais sensível. Como se tivesse esticado a corda do violino e esta
vibrasse ao menor toque, com maior intensidade e frequência. Por isso, mais do
que uma mudança sofri uma evolução, que introduziu outra doçura na relação com
as pessoas.”
Benevolente, mas não bondoso
A benevolência surge da capacidade de reconhecer nos
outros os nossos defeitos. Da irmandade secreta entre as faltas que os outros
cometem e as que cometemos. Mas tem limites. Há coisas com que já não sou assim
tão tolerante. Nomeadamente, algumas falhas de caráter. Não que isto tenha
mérito moral — não tem nenhum.”
Uma vida entre batalhas vencidas e perdidas
Tenho refletido muito sobre o que foi a minha vida e
diria que se houve guerra foi vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como
médico e cirurgião. Mas ganhei mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma
estratégia cautelosa. Nunca me meti numa guerra que não achasse que tinha
possibilidade de vencer. Ou seja, fui sempre pragmático, apesar dos meus
devaneios literários ou filosóficos. E tive muitas quando voltei a Portugal.”
A doença como “implacável igualizador”
De facto, o meu hospital era um lugar para pessoas
importantes, e o reconhecimento do estatuto de privilégio de cada um era um
passo prévio e indispensável na relação que se estabelecia. Para o doente, isto
era essencialmente um mecanismo de defesa, um grito de apelo adicional, a
reclamação da atenção exclusiva, o que não surpreende, pois todos os doentes,
sem excepção, se encontram no estado que alguém descreveu eloquentemente como
de ‘wounded humanity’. Mas, no fundo, a doença é um implacável igualizador e ri‐se do berço e da fortuna”.
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
O balanço final
A doença convida ao exame da vida, provavelmente a
única circunstância em que chegamos próximo da análise lúcida do caminho
percorrido. Então regressam à cena os actores esquecidos da nossa biografia.
Voltamos a viver os momentos em que subimos mais alto do que alguma vez
aspirámos, ou descemos àquela profundidade em que a vergonha nos perdera.
Ouvimos novamente as palavras que deveríamos ter contido ou então, pelo
contrário, as que ficaram por dizer. Contabilizamos o balanço final e
escrevemos, com um sorriso e um travo de amargura, o último currículo.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
A rejeição da comiseração piedosa
Prefiro a compaixão ontológica, de bicho para bicho,
um sentimento cuja essencial nobreza tem uma raiz biológica que só agora se vai
desvendando à comiseração piedosa, um sentimento mais barato. Esta é a minha
maneira de ser doente.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
A traição do corpo e o refúgio na mitologia da
adolescência
Por isso, quando o corpo me traiu, o meu refúgio foi
adoptar a impassibilidade do coronel inglês de calças de caqui e pingalim, cuja
imagem se gravara, indelével, quando ainda adolescente vi pela primeira vez
David Niven na Ponte do Rio Kwai.
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
O futuro da medicina
Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é
que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada
pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de
cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar,
não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou
compaixão.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
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