Agência ECCLESIA – Como conheceu D. Oscar Romero?
D. Gregorio Rosa – Ele
era um sacerdote, quando eu o conheci – ele tinha 40 anos e eu tinha 15 anos,
quando começava os meus estudos no seminário menor. Depois trabalhei com ele
um ano inteiro no seminário menor de San Miguel, como seu assistente, em
1968, e tornamo-nos amigos.
No seu diário, o meu nome aparece muitas vezes,
porque éramos muito próximos. Aparece sobretudo quando Romero era arcebispo e
tinha de preparar relatórios para Roma, a fim de explicar-se e defender-se de
ataques injustos que chegavam contra ele. Isso aparece no diário, era uma
experiência de amizade muito profunda e uma graça para mim, muito especial.
AE – O percurso de vida de D. Oscar Romero ficou
marcado por incompreensões, dúvidas. Pensa que ainda hoje há gente na Igreja
e não só que não entendeu esta figura?
GR – Eu também
sou jornalista e preparei com ele muitas vezes um programa de rádio, de 30
minutos, que era transmitido todas as semanas. Fazia questões muito
provocadoras a Romero e uma vez perguntei-lhe: você transformou-se,
monsenhor? Ele respondeu-me que não diria que era uma transformação, mas uma
evolução.
Esta mesma ideia aparece num documentário da
televisão suíça em 1979, um ano antes de morrer. Perguntam-lhe a mesma coisa
e ele diz com mais pormenor como, quando era bispo no interior do país (Tambeae,
ndr), via as coisas de uma forma e quando chegou a arcebispo e está na
capital, descobre de forma brutal o que é a violência estrutural, o que chama
de injustiça institucionalizada. E descobre que tem uma vocação, a de
acompanhar o povo que está esmagado pela violência, pela repressão, pelos
esquadrões da morte, e ser voz dos que não têm voz.
Romero vai evoluindo para uma missão profética – os
profetas nunca são compreendidos -, ele nas suas homilias fala muito do tema
do profeta e compara a missão de Jesus com a missão dos profetas. Ele foi um
profeta e por isso foi incompreendido, perseguido, foi assassinado: é muito
fácil perceber, a partir daí, o que foi a missão de Romero, o que foi a sua
opção, a sua vida, também o seu martírio, um profeta fiel à sua missão,
porque foi acima de tudo um discípulo de Jesus Cristo.
AE – Esse martírio aconteceu já há 33. Porque há
tantas dificuldades no processo de beatificação de D. Oscar Romero?
GR – Essa
pergunta aparece permanentemente e vou aprendendo a responder com elementos
novos. Quero fazer uma breve história deste facto: Romero foi incompreendido
em primeiro lugar pelos seus próprios irmãos bispos – quando era arcebispo,
eram seis bispos no país (El Salvador, ndr), quatro contra dois, tinha
apenas um bispo a seu favor (05h00), que foi depois seu sucessor em San
Salvador (D. Arturo Rivera Damas), quando havia votações, perdia
sempre. Este é um ponto importante.
Ele disse uma vez, falando com jovens de um colégio
católico: “Para uns sou a causa de todos os males do país, para outros sou o
pastor que acompanha o povo”. Portanto, há duas visões sobre Romero, o homem
recusado e o homem amado como pastor.
Depois, há um segundo momento: Romero é assassinado
por um grupo preparado por um militar (Roberto D'Aubuisson) que fundou
um partido político (ARENA), e esse partido chegou ao Governo,
governando durante 20 anos. Nunca nesses 20 ano se interessou por Romero,
pelo contrário, interessou-se em ir contra ele, já que tinha morrido por
causa deles. Por isso, Roma nunca teve um sinal positivo sobre a canonização
por parte do Governo, porque Romero era um inimigo.
Há quatro anos, temos um primeiro Governo de
esquerda, que levou Romero a sério. O presidente (Mauricio) Funes, no
dia da sua proclamação, disse: Romero é a minha inspiração, o meu modelo, e
quero como ele optar pelos pobres e seguir os seus ensinamentos. Assim, Roma
começa a ouvir algo diferente, nos últimos anos.
Um terceiro elemento é que Romero é um Santo
incómodo, os profetas são incómodos. Não é Madre Teresa de Calcutá, é outra
coisa, por isso é um profeta que, como Jeremias, é incómodo e querem acabar
com ele. Estes santos desinstalam-nos, tiram-nos do sítio, obrigam-nos a
rever a nossa vida medíocre.
Isso também foi um factor contra Romero, mas ao
mesmo tempo há uma corrente cada vez maior em seu favor e os Papas foram
entendendo isto. O Papa João Paulo II entendeu Romero a partir do ano de
1983, quando visitou o seu túmulo pela primeira vez, e acabou por
compreendê-lo bem a partir dos anos 2000 e 2001, quando disse que era um
mártir da Igreja.
Tenho os testemunhos directos dessa visão do Papa:
não foi fácil para o Papa João Paulo II entender como é que um bispo é morto
por cristãos, como eram os comunistas de El Salvador – que não eram como os
da Polónia ou da Europa de Leste -, era outra coisa. Finalmente foi-o
compreendendo, era outra visão do que era a esquerda, é um problema complexo
que se foi esclarecendo, pouco a pouco.
AE – Essa visita de João Paulo II ao túmulo de D.
Oscar Romero, em 1983, foi um momento de tensão…
GR – O que é
surpreendente é o que conta o seu secretário pessoal, Dom Estanislau
(Dziwisz), agora arcebispo de Cracóvia, num livro que se intitula ‘Uma vida
com Karol’. Há um capítulo dedicado ao martírio, no qual fala de apenas um
mártir, Romero, e relata dois factos relacionados com o Papa João Paulo II,
que é importante partilhar com quem está a ver este programa.
O primeiro é do ano 1983: conta ele que antes da
visita a El Salvador, disseram ao Papa que não convinha que visitasse o
túmulo de Romero, porque esse era um tema muito politizado, e o Papa
respondeu: Como não o vou visitar, se morreu no altar, durante a Eucaristia?
Houve pressões no país para que não fosse ao túmulo
de Romero e quero contar uma história: para preparar essa visita, houve uma
comissão mista, Governo-Igreja, para tratar da segurança, do protocolo, etc.,
e eu fui um dos encarregados. Estávamos reunidos quando chegou uma nota da
Nunciatura que dizia que o Papa gostaria de visitar o túmulo. Diziam que não
era adequado, que era perigoso, que não havia condições, que não o devia
visitar.
Numa segunda reunião, chegou outra nota da
Nunciatura onde se dizia que o Papa visitará o túmulo. Visitará. Então,
negociamos com o Governo que a visita não seria publicada no programa, que
seria privada e confidencial, digamos. A 6 de Março de 1983, quando chega o
dia da visita do Papa, prevista para depois do almoço, o cardeal Tucci
disse-me de manhã: “Vamos já para a Catedral”. João Paulo II chegou ao túmulo
quando não estava ninguém à sua espera.
Outro facto aconteceu no ano 2000, com o Jubileu dos
Mártires, a 7 de maio, no Coliseu. Na quarta-feira anterior, anunciou-se na
sala de imprensa da Santa Sé como seria a cerimónia, uma grande paraliturgia,
e falou-se de cada continente, quem ia ser evocado como mártir. Na América
Latina, são mencionados três nomes de bispos, mas não apareceu o de Romero, e
os jornalistas perguntaram porque é que não estava. Houve uma reacção em
Roma, muito forte, de protesto.
Dois dias depois, o Papa convidou vários cardeais,
para jantar, entre eles o cardeal Kasper, que também me contou o que vem no
livro: João Paulo II pediu o livro que ia ser usado na cerimónia dos
mártires, procurou a página da América Latina e a oração conclusiva dessa
secção, onde escreveu “bispos como o inesquecível monsenhor Romero, que
entregou a sua vida no altar”. E teve de se fazer um novo folheto.
Nós temos os dois folhetos, o que se ia utilizar,
sem referência a Romero, e o que se usou, mencionando-o. Foi o único nome
evocado.
Há um último dado, de que sou testemunha pessoal, no
ano 2001, mês de Novembro. Temos visita ‘ad Limina’ com João Paulo II, a
última que lhe fizemos, e no momento pessoal com o Papa, o arcebispo
(Fernando Sáenz Lacalle) chega e eu vou com ele. O Papa está muito cansado, muito
doente, não reage ao que diz o arcebispo, mas de repente levanta a cabeça e
pergunta: E Monsenhor Romero?
O arcebispo responde: Estamos a falar sobre a
devoção, não sabemos se há algum milagre por sua intercessão…
O Papa pôs-se de pé, pega na bengala e diz: É um
martírio. E vai-se embora.
São dados do pontificado de João Paulo II que
indicam que ele foi compreendendo e chegou à convicção de que Romero é um
mártir. São dados interessantes, totalmente comprovados, que indicam uma
evolução no Papa: ele entendeu o que se passou com Romero e chegou à
conclusão de que é um mártir da Igreja.
Agência ECCLESIA – Que actualidade tem este
arcebispo assassinado no altar para uma jovem geração que nunca teve contacto
com ele?
GR – Vou responder
com uma história do ano 2000. Nesse ano, no 20.º aniversário (da morte) de
Romero, houve uma grande marcha nas ruas de San Salvador, com archotes. Havia
bispos italianos na marcha e eu estava a celebrar em Roma. Quando eles
voltaram, emocionados, os bispos vinham surpreendidos porque os jovens
gritavam na marcha “Sente-se, sente-se, Romero está presente”.
Os jovens de hoje estão a conhecer Romero e
entusiasmam-se com ele, porque vêem um homem coerente com as suas convicções,
um homem que é fiel ao ser humano e defende os Direitos Humanos, que é fiel a
Jesus Cristo, que é fiel à Igreja e dá a vida por esses ideais.
Os jovens precisam de algo que dê sentido à sua vida
e vêem em Romero um discípulo de Jesus Cristo que é coerente com o que diz,
com o que faz, e as pessoas precisam de modelos assim. Hoje vivemos num mundo
que não tem modelos, não tem líderes. Romero é um líder, um modelo para os
jovens de hoje, para as pessoas, e por isso é um santo muito actual.
É espantoso que mesmo no mundo dos não crentes,
Romero seja uma inspiração, pelo que estamos em muito boa companhia e com o
Papa Francisco temos, penso, o melhor momento para que o processo de
canonização possa avançar até ao final.
OC/Agência ECCLESIA
|
Sem comentários:
Enviar um comentário