Quando Desmond Tutu chegou ontem a Portugal, uma das notícias a correr mundo era a expulsão de imigrantes negros de Israel, insultados pelo próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyau de serem "um cancro do nosso corpo".
Sinal de que o mundo está pior ou igual àquilo que era quando o arcebispo da Igreja Anglicana, conhecido como "a voz dos que não têm voz", lutava pelo fim do apartheid a África do Sul? Nesse tempo, Tutu comparava a situação nos territórios palestinianos à vivida no seu país.
Na África do Sul, lutou pacificamente contra o regime segregacionista do apartheid. Foi Nobel da Paz em 1984, antes de Nelson Mandela e do Presidente De Klerk, em 1993.
Pouco depois, presidiu à Comissão da Verdade e Reconciliação, que juntou vítimas e agressores, numa tentativa de virar a página da violência, longe dos tribunais.
Questionado sobre essa sua experiência, disse-se "horrorizado com o mal que fora destapado". Numa entrevista à BBC, acrescentou: "Talvez um dia, a pensar em todas estas coisas, nos sentemos e choremos."
Desmond Mpilo Tutu nasceu em 1931 em Klerksdorp, no Transval. Completa 81 anos em Outubro. Está no Facebook e no Twitter. E foi neste último que escreveu quando Mubarak caiu em Fevereiro: "Irmãos e irmãs do Egipto, deram ao mundo a prenda mais preciosa: a crença de que, no fim, o direito prevalece."
Não foi militante de nenhum partido. Talvez a Bíblia, que vai invocando, seja a sua política. Continua, como no passado, a levantar a voz contra todo o tipo de injustiças: pelo fim do casamento de menores na Índia e pelo direito ao casamento dos homossexuais, pelas vítimas do HIV, e outros. Continua a ser uma voz crítica, também do seu próprio país. E uma voz que todos ouvem. A.D.C.
A reconciliação na África do Sul vai demorar tempo
Por Ana Dias Cordeiro (texto) Pedro Cunha (foto)
O perdão "não foi um instrumento perfeito, mas foi um instrumento muito útil", disse ao PÚBLICO Desmond Tutu. O arcebispo que presidiu à Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul ainda hoje é visto como um ícone de esperança para lá da Igreja Anglicana e do seu país
O azul-cinzento dos olhos só é perceptível de perto. Torna-se mais azul e menos cinzento quando ri. E isso acontece várias vezes, mesmo numa curta entrevista. Desmond Tutu, arcebispo da Igreja Anglicana e Nobel da Paz em 1984 pelo papel que desempenhou na luta contra o apartheid no seu país, a África do Sul, chegou ontem a Lisboa. Hoje, participa, ao lado de Jorge Sampaio, alto-representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, na conferência pública Diálogos sobre a Paz e o Desenvolvimento Sustentável, às 18h30, na Fundação Gulbenkianem Lisboa.Anunciou que se ia retirar da vida pública em 2010 para abrandar o ritmo e ver mais cricket. Não o fez. São muitas as solicitações num mundo a precisar de paz e justiça social?
Há um grande apelo no mundo por um modelo diferente de sociedade: vemos o movimento Occupy Wall Street, as manifestações [dos indignados] na Europa. Em todo o lado, as pessoas estão a dizer: "Não é assim que devíamos estar a viver." Devia haver mais igualdade. Não devia haver de um lado os muito ricos e, do outro, os outros tão pobres. Mil milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia e isso é muito aflitivo. Estas disparidades são uma receita para a agitação.
As pessoas chegaram a um ponto em que estão à procura de uma sociedade mais equilibrada.
Quando olha para a Primavera Árabe, vê pessoas com menos medo para protestar nas ruas?
As pessoas estão a tornar-se mais conscientes de que lhes foram negados direitos inalienáveis, no Egipto, na Líbia e em todos esses lugares, as pessoas estão a dizer que isso não está certo. Cada vez mais, as pessoas estão a envolver-se umas com outras, através da Internet e outros meios de que antes não dispunham. Muito basicamente, estão a fazer o que Deus há muito tempo disse: vocês pertencem a uma família. Não é só no sentido figurado. É no sentido real. Vocês são uma família, e há a família humana. E quando se pertence a uma família, sabe-se como as pessoas partilham mesmo as quantidades mais pequenas do que têm.
Tem página no Facebook e escreve no Twitter. As redes sociais ajudam a concretizar essa noção de pertença a uma mesma família?
As pessoas estão a descobrir que podem estar em contacto. Podem ser chamadas. Foi assim que se fez nas manifestações da Primavera Árabe. As pessoas juntaram-se. Se houvesse poucos, teria sido perigoso para eles. Mas agora saem porque sabem que têm força nos números. Não parece ser o caso na Síria, mas noutros lugares as pessoas estão a dizer: "Têm que nos levar a todos a sério."
Por que não resulta na Síria?
Aprendemos da História que não aprendemos nada com a História, disse-me uma pessoa uma vez. Mubarak pensava que ia ficar no poder para sempre, Kadhafi também... O Presidente da Síria pensa que, por alguma razão, é invencível e tem os que o apoiam, e esses têm medo que se as coisas mudarem também terão de pagar o preço da repressão que as pessoas sofreram.
Se tivesse que apontar um caso no resto de África onde seria previsível uma Primavera Árabe, qual seria?
Temos o Zimbabwe como o caso principal. Mas há muitos países onde a voz das pessoas não é ouvida: Mali, Guiné-Bissau e outros. Talvez tenham aprendido com os maus exemplos dos seus mestres coloniais! [risos] Somos todos africanos. Mas por que pensamos que é melhor ser um ditador do que alguém que está lá pela vontade do povo?
Durante anos denunciou a situação nos territórios ocupados da Palestina e fez paralelos com a situação vivida na África do Sul, sob o regime do apartheid. Ainda faria essa comparação hoje?
É algo que nos salta à vista, ainda hoje. As coisas que acontecem aos palestinianos lembram-nos tanto as coisas que costumavam acontecer na África do Sul. Para mim, olhar para estes jovens israelitas e pensar no que estão a fazer a si próprios é profundamente entristecedor. Felizmente, há muitos israelitas que se opõem a isso e que tentam defender uma situação mais justa. Mas para o próprio bem deles [dos israelitas], vemos que quando uma pessoa executa políticas injustas, isso, sem dúvidas, vai deixar-lhe marcas. Vimos isso quando tivemos a Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul. Quando se desumaniza o outro, quer se queira quer não, nesse processo, a pessoa desumaniza-se a si própria.
Foi presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação e o perdão foi a base da reconciliação. Foi uma boa opção para a África do Sul?
Reconhecemos que não foi um instrumento perfeito, mas foi um instrumento muito útil, na medida em que os sul-africanos conseguiram fazer essa transição de um sistema opressivo para uma democracia e são capazes de viver juntos. Não tenho dúvida de que, sem uma coisa assim, teríamos incendiado o país. Muitas pessoas acharam que teríamos tido um banho de sangue racial.
Perdoando os agressores faz-se justiça às vítimas?
Uma das coisas que costumamos pensar é que só existe um tipo de justiça, a retributiva. Mas há também outro tipo de justiça: a restauradora. Quando um mal é cometido, o equilíbrio na comunidade é perturbado, as relações estão feridas e precisamos de algo que restaure o equilíbrio na relação. Não estamos tanto à procura de punir, mas de sarar, e vê-se. Os agressores, para serem amnistiados, tiveram de confessar em público os actos que tinham cometido.
O país está reconciliado?
Não! As coisas não se passam dessa forma, assim de repente. É um processo. Em muitos lugares, vai demorar algum tempo chegar ao ponto em que as pessoas deixam de usar a raça como algo com que agredir o outro. Mudanças aconteceram e estão a acontecer. Quando vimos, no passado, crianças obrigadas por lei a frequentar escolas diferentes e hoje vemo-las a frequentarem as mesmas escolas. Estamos a fazer coisas que antigamente eram ilegais. E o céu ainda está onde estava. Vai demorar algum tempo para as pessoas se tornarem normais. Mas estamos a mover-nos nessa direcção.
Depois do fim do apartheid, continuou a lutar em defesa dos oprimidos e das minorias.
Não é algo que escolho fazer. Se continua a acreditar no Deus em que acredito, não tenho escolha.
É isso que o move quando defende o casamento homossexual ou o aborto, questões sensíveis para a igreja?
Acho que não se deve penalizar as pessoas por algo que não foi a sua escolha - como a raça, o género ou a orientação sexual.
E o aborto?
Na Igreja Anglicana, somos a favor da vida. Mas podem surgir situações em que uma mulher é violada e engravida. E obrigá-la a ter essa criança, será colocá-la perante a lembrança constante da enorme ofensa que viveu. Como vai olhar para essa criança, e educá-la? Penso que temos que pesar, de forma muito sensível, os prós e os contras.
Tem, relativamente ao aborto, uma posição mais liberal do que a da Igreja Anglicana?
Digo que temos que ser um bocadinho mais sensíveis - e não tão legalistas.
Quem é, para si, Nelson Mandela?
Um ser humano fantástico. Quando vai para a prisão, é uma pessoa zangada, revoltada. Acreditava na violência como meio de conquistar a liberdade. E quando sai, emerge como uma pessoa extraordinariamente magnânime. O sofrimento por que passou ajudou-o a suavizar a sua posição. O sofrimento nem sempre faz isso, pode tornar as pessoas muito amargas. Mas a ele, ensinou-o a querer compreender a posição do outro. Ele acreditava convictamente que se é líder pelas pessoas que são lideradas e não em benefício próprio. Fomos incrivelmente abençoados por termos Madiba [Mandela] aos comandos, num momento da história do nosso país. Obviamente que temos de prestar tributo ao senhor De Klerk por ter tido a coragem de começar este processo. Mas é muito difícil ver quem teria alcançado o que foi alcançado, se não fosse Mandela.
Quando Mandela morrer, como vai a África do Sul reagir?
Vai ser um momento traumático para todos nós, mas o facto de ele estar longe do olhar público há tanto tempo ajudou a preparar o país e os seus dois sucessores [Mbeki e Jacob Zuma].
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