O
que a fé não é (2)
Nos primeiros séculos do Cristianismo desenvolveu-se uma crença que se veio
a chamar de «gnosticismo». O gnosticismo tem origem na palavra
grega «gnoses», que significa «saber».
Os gnósticos acreditam
que possuem um conhecimento mais elevado, são uma classe privilegiada em
relação às outras, porque têm um conhecimento superior e mais profundo sobre
Deus. A salvação dependia de uma iluminação ou conhecimento interior que
libertasse do mal e da ignorância da vida neste mundo. Negam a humanidade de
Jesus, recusam aceitar o Antigo e o Novo Testamentos. Negam a doutrina da
Igreja e a tradição cristã. O gnosticismo tem uma visão dualista da pessoa e da
criação. A alma humana está aprisionada ao corpo e a criação não é vista como
um bem, mas enformada pelas forças do mal. Os humanos desejam o bem e a
verdade, mas estas realidades estão fora das realidades criadas. Neste sentido,
Deus é uma entidade totalmente transcendente, que envia uma pequena luz e um
ténue conhecimento secreto (gnoses) para alguns privilegiados que tenham a
«sorte» de aceitar essa iluminação interior.
Bom, a fé não é esta
forma de conhecimento nem outra que se encaixe num circunscrito mundo pessoal
ou de um grupo. Está muito além deste parâmetro e encontra terra fértil no
coração de todos aqueles e aquelas que se abram ao abraço do mistério. Tudo o
que seja conhecimento esotérico, secreto, sobre as coisas de Deus, da vida e do
mundo, para dizer de uma fé, que só está ao alcance de alguns, não se enquadra
no pensar do Evangelho de Jesus de Nazaré nem encontra justificação na doutrina
e tradição cristãs.
As pessoas que
acreditam não têm informações «confidenciais e secretas» sobre nada. A fé abre
ao mistério de Deus e faz com que o crente possa perscrutar nem que seja por
pequenos sinais a vontade de Deus em relação à sua vida e à vida do mundo. Por
isso, a criação não pode ser um mal desde logo, mas um bem que nos revela a
acção de Deus. Em tantos sinais da vida e do mundo criados, podemos vislumbrar
a presença de Deus e a Sua vontade. São Paulo confirma: «Com efeito, desde a
criação do mundo, as suas perfeições invisíveis, eterno poder e divindade, são
visíveis nas suas obras, para a inteligência…» (Rom 1, 18-21).
A fé não pode ser uma
forma de conhecimento centrado num secretismo qualquer, mas uma realidade
interior que abre o coração da pessoa não apenas para o «seu» conhecimento ou a
«sua» iluminação, mas para todas as realidades que desvelem alguns conhecimentos acerca de Deus, da salvação e do sentido da vida em plenitude.
Acolher a fé desta forma livra-nos do perigo do fundamentalismo e da propensão
para a violência que a fé reduzida ao afunilamento podem facilmente levar aqueles
que assim concebem o caminho da fé. Temos tido ainda recentemente muita
violência e insegurança em nome de «fezadas» propagadas por grupos e pessoas
individualmente. A fé nunca destrói. Se conduz a algum mal, então estamos
perante a ausência da fé ou então perante conteúdos totalmente distorcidos acerca do que é e deve ser o acolhimento da fé.
A fé não sendo esse
conhecimento secreto e afunilado, apresenta-se em nós como um dom que nos
revela o que somos, de onde viemos e para onde vamos. Como diz Simon Weil: «Se
mergulhamos em nós mesmos, descobrimos que possuímos exactamente o que
desejamos». A fé por este caminho nunca nos violenta nem muito menos faz
violentar os outros e a obra da criação. Porque, «Deus é cheio de compaixão e
nunca falha com os aflitos e desprezados, se estes confiarem apenas Nele» (Santa
Teresa D’Avila).
A fé não sendo um
conhecimento que nos dá as maiores certezas e a segurança que tanto procuramos,
leva-nos à confiança no mistério, envolve-nos nele e nesse «abandono» podemos
encontrar um sentido para a vida presente e a vida futura.
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