Cada vez mais me vai chegando à minha memória
aqueles dias de Verão, quando subia o caminho da Cruz, com suor às bicas
carregado de livros para os entregar ao sr. da biblioteca itinerante, peço
desculpa por não nomear o sr., porque, por mais voltas que dê à cabeça não me
consigo lembrar do nome. Porém, salta-me à memória a sua estatura física gigante
e a sua voz arrastada, rouca que não me parecia ser doença, mas a voz que Deus
tinha dado àqueles livros itinerantes como dádiva para os pobres. A voz
estridente falava grosso, que assustava até os livros, ninguém piava dentro da
carrinha, só ele é que falava, um general que não parava, dentro e fora, remexendo
nos livros e dando ordens a todos, despachando as tropas com livros e mais
livros enfiados pelas unhas dentro. Bastava dizer a idade e o ano escolar, logo
saltava das estantes os livros que se tinham posto a jeito para soldado devorar.
O homem era irrequieto de mais, um livro aberto a distribuir livros como se
fossem bombons.
Este foi o primeiro contacto com os livros. Uma
graça que as extraordinárias Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian
proporcionaram. Um milagre, que fazia tanta gente nos recônditos da Ilha da
Madeira sonhar em vários momentos do dia, especialmente, à noite à luz da
torcida alimentada a petróleo. O manuseio dos livros, que se faziam nossos por
um tempo, provocavam um encanto, um sorriso, uma alegria trazidas sabe-se Deus
de onde, por esses amigos cheios de histórias diferentes, pejados de letras, d
e páginas e enredos que faziam esquecer a pobreza e a ausência de tantas coisas
que hoje consideramos indispensáveis, mas antes nem sonhávamos que existiam ou
que viessem existir tal como as saboreamos hoje.
Ali naquele ambiente tórrido dos verões, nas férias
grandes, nasceu o encanto pelo amigo livro, que me lançou na vida escolar, a
amizade pelas letras, pela literatura, pelo pensamento (a riqueza mais
universal que conheço) e pela escrita. Foi este companheiro que fez de muitos
pedaços da noite uma magia, um encanto essencial para exorcizar tantas coisas
que a vida nos vai dando que dizemos algumas vezes em sofrimento. Busco o
livro, mas o livro procura-me tão ávido e tão necessário para a grandeza de uma
relação. Não será por acaso que o Padre António Vieira terá pregado: «O
livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que
vive». Quantas vezes, saboreei este pensamento sem o conhecer naqueles livros
que abracei da biblioteca itinerante? - Que saudades...
Hoje luto e faço um esforço frenético
tomado tantas vezes de impaciência, porque o tempo não chega. Nada mais temo
senão ter que viver com essa ideia que nos ensina o autor Victor Hugo: «Há
pessoas que têm uma biblioteca como os eunucos um harém». Nada mais repudiante
do que isso, muitos livros ao abandono, a serem devorados pelo pó em tantas
livrarias e bibliotecas deste mundo, porque a virtualidade da vida actual os
votou ao desprezo e a sofreguidão de ser gente hoje onde abunda tudo, condenou
o livro ao esquecimento e à solidão do pó.
No meu caso, retenho o pensamento
de Hermann Hesse: «Ler um livro é para o bom leitor conhecer a pessoa e o modo
de pensar de alguém que lhe é estranho. É procurar compreendê-lo e, sempre que
possível, fazer dele um amigo». Quantas amizades perdidas andam por aí? –
Imensas. E quanta sabedoria poderia comandar tantas vidas se o livro fosse o
principal amigo na vida de cada pessoa. Por mim vou fazendo o que posso, para
que o livro não se sinta desprezado por minha causa. Eis o meu contributo ao livro,
neste Dia Mundial do Livro.
3 comentários:
O sr. da carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, tinha o nome de Campanário. A estatura e o vozeirão da pessoa em causa fazia jus ao nome... Gostei que me relembrassem do nome. Obrigado.
O sr. da carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, tinha o nome de Campanário. A estatura e o vozeirão da pessoa em causa fazia jus ao nome... Gostei que me relembrassem do nome. Obrigado.
O sr. da carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, tinha o nome de Campanário. A estatura e o vozeirão da pessoa em causa fazia jus ao nome... Gostei que me relembrassem do nome. Obrigado.
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