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terça-feira, 14 de março de 2017

Domingo passado foi dia de indignações com graça

1. Entre todas as notícias que nos chegaram no domingo passado, a mais engraçada de todas foi a que nos presenteou o JM-Madeira: «Estrangeiros não querem galos a cantar no Jardim do Mar». Aprendi que os barulhos altos e mudanças nos níveis das luzes, tudo isso é tido em conta pelo galo como uma ameaça e ele não deixa por menos, canta para mostrar quem é que manda. Nesse caso, a função é bradar mais alto frente ao inimigo. E isso não acontece apenas nas primeiras horas do dia, mas sim em qualquer hora em que o animal considerar que está correndo perigo. Por isso, quanto mais reclamarem, mais cantarão os galos do Jardim do Mar e do mundo inteiro.   

2. Pelo meio também se leu uma Carta do Leitor, que está a provocar um aluvião de indignação na Madeira comparável ao aluvião de 20 de fevereiro de 2010. Não ligo a este tipo de descrição anónimo, porque o signatário da dita carta, é tão turista de Coimbra, que veio à Madeira passar férias de três semanas pendurado nas asas dos pais à conta de amigos da ilha, como eu vir a ser natural de Marrocos.
Paulo Pereira, só pode ser nome falso, sabe muito da Madeira, para falar tanto e mostrar-se tão conhecedor de tantas coisas madeirenses que não se aperceberia apenas em três semanas, a não ser que tenha visto o mais recente filme sobre o Feiticeiro da Calheta e tenha aprendido algumas técnicas da feitiçaria. Muito exagerado nalguns aspectos, é claro, mas cheio de razão em tanta coisa que diz. Quanto à indignação que veio por aí abaixo, ficamos também conversados, porque há tanta coisa que merece a mesma indignação e vejo que deixam passar em branco sem tugir nem mugir. Este madeirismo exaltado vale tanto como aquele que se vê quando as equipas grandes do futebol português (Benfica, Porto e Sporting) jogam na casa das equipas madeirenses, alguns adeptos regionais das equipas grandes lascam-se se estas perdem face às equipas da região. 
Tiro o chapéu ao escriba coimbrã ao engenho de se ter tomado como turista que veio de Coimbra na companhia dos pais à boleia dos amigos ilhéus dos pais. O embrulho foi bem embalado e serviu bem para que muitos caíssem que nem patos, melhor, galos, já que este texto pretende fazer dos galos protagonistas.

3. Vamos então aos galos. Os estrangeiros não querem galos a cantar à sua porta no Jardim do Mar. No Arquivo de Fernando Pessoa, com o pseudónimo de Bernardo Soares, num texto inédito com este título: «Eu nunca fiz senão sonhar», destaca-se esta passagem que transcrevo e alguém, se quiser, que se encarregue de fazer chegar aos galos, desculpem, aos novos habitantes do Jardim do Mar, que vieram ajudar a compor a nossa tão debilitada e minguante natalidade…
Diz assim, o poeta do «Livro do Desassossego»: «Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direcção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que entretém essas pobres realidades...». Alguém que enfie o barrete!
O que queriam afinal os estrangeiros quando escolheram uma casa de campo no Jardim do Mar? E o que devem dizer quanto aos outros prováveis barulhos do Jardim do Mar, por exemplo, os cães, os grilos, o bater das ondas, o vento nas encostas, os passos das pessoas que sempre viveram ali e sei lá todo o ruído que envolver qualquer lugar onde se esteja? – Bom, é melhor não ligar mais a isto… Salientei pela graça que me provocou e queria partilhar com os leitores do Banquete esta passagem de Bernardo Soares, onde ele fala do «ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus...». 

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