Desde que
começou a ser notícia o filme: O Feiticeiro da Calheta, não dei muita
importância e até nos últimos tempos, depois de estrear, estava decidido não
ver o filme. Porém, num daqueles repentes que às vezes me dá, peguei em mim e
lá fui ver o filme na sessão de ontem na sala do Casino da Madeira. A película é da autoria do realizador
madeirense Luís Miguel Jardim e situa-se nos anos 40 e 50 do século passado.
É um filme
datado e vai servir para deixar um registo de um feiticeiro e ou feiticeiras
que o atraso cultural do povo da Madeira foi elegendo ao longo da sua história.
São várias as freguesias na Madeira que têm o seu Feiticeiro ou feiticeira.
Quem não nunca ouviu falar no Feiticeiro do Norte...
O filme é a
história de alguns dados biográfica do Feiticeiro da Calheta (poeta popular
madeirense João Gomes de Sousa), que descreve as características essenciais de
todos os feiticeiros e ou feiticeiras madeirenses. É alguém, sempre pobre e
analfabeto, mas tem sabedoria oral e manifesta uma capacidade extraordinária
para rimar quadras sobre a vida popular, é um contador de histórias nato,
declama ou canta as quadras nas conversas e nos despiques nos arraiais típicos
da Madeira, porque o feiticeiro é um cantor nato dos seus versos, toca um
instrumento (o Machete), vai à cidade frequentemente, é sonhador, ajuda os
outros pobres e faz premonições.
O filme
pretende essencialmente homenagear o criador do «bailinho da Madeira», porque
descobriram que afinal o pai dessa tão popular canção madeirense é o Feiticeiro
da Calheta. Segue-se estas
quadras como exemplo, do seu génio criativo:
«Ainda há uma coisinha d'arroz
Porque vem de fora em saco
É guloso de comer
mas é um pouco mais fraco
Agora está a oito patacas
Quando em tempos era barato
Há muita falta de azeite
e o bacalhau de quarto».
O filme Feiticeiro da Calheta, de acordo
com o meu singelo observar, tem quatro elementos que merecem devido destaque: 1.
o falar (sotaque) madeirense, 2. a denúncia certeira do regime da colonia, 3. a
pobreza miserável, 4. a intriga (a "bilhardice") quotidiana à sombra
da religião.
Um à parte. A Igreja Católica da
Madeira, no filme até fica bem representada com alusão à obra magnífica do padre
Laurindo Leal Pestana (1883-1951), que era Diocesano, padre da Diocese do
Funchal, e pároco de Santa Maria Maior, Socorro. É o Fundador da escola de
Artes e Ofícios, que futuramente será entregue aos Salesianos, ao contrário do
que é referido no filme que já nessa altura já estaria sob espírito da
pedagogia dos salesianos.
O Padre Laurindo, é uma figura, que
merecia um filme sobre a sua vida e obra. Fica aqui o desafio ao realizador do
filme Feiticeiro da Calheta, Luís Miguel Jardim.
Vamos agora aos elementos que me
permitem fazer a leitura do filme.
1. O falar (sotaque). Está muito bem
apanhado, está cheio de expressões típicas do nosso falar, mas que se vai
perdendo à medida que o tempo passa e as novas gerações vão recebendo as
influências da sociedade massificadas, o poder da comunicação social fez o seu
caminho. Ri com vontade quando os diálogos entre os autores se fazem recorrendo
a expressões do género: «levei uma malha, que esmigalhou-me o corpo todo»; «vou
partir-lhe as ventas»; «1 kl de açucre para marcar no role»; «vais pagá-las
todas nem que seja a arder no inferno»; «raio da peste»; «maldito»; «cruzes,
credo abrenuncia»... Entre tantas outras.
2. O mais importante do filme é a denúncia do regime da colonia. Os senhorios
têm uma interpretação brilhante e retratam claramente como era o proceder dos «senhores
donos disto tudo» da Madeira velha, que exploravam as famílias a todos os
níveis, a terra pertencia-lhes e pagavam com pobreza, exploração e
promiscuidade aos seus colonos. O melhor pertencia-lhes. Até o «direito» de
abusarem sexualmente das filhas das pobres famílias trabalhadoras das terras
colonizadas. Um regime terrível que merecia ser melhor estudado nas nossas
escolas, para que mais nenhuma forma de exploração viesse acontecer ao nosso
povo, até porque hoje temos outras formas de exploração que os poderosos
inventaram para usarem e abusarem da dignidade dos mais frágeis, como era o caso,
da «maldita» colonia.
3. A pobreza
roça a miséria. As crianças passam fome, andam descalças e o pormenor dos pés
descalços das crianças é das cenas mais tocantes do filme. Neste domínio
deve-se destacar o papel das filhas do
senhorio, porque percebem que a pobreza radica aí e quando se aproximam das
crianças dos seus benfeitores (as filhas dos colonos) tiram os sapatos, roubam
pão das suas mesas fartas e levam às crianças esfomeadas.
É muito
interessante que são as crianças, filhas dos senhorios, que fazem a leitura
clara da injustiça e que fazem sentir aos seus pais e avô que há fome e miséria
nas casas das famílias que eles exploram, os seus colonos.
4. A juntar
a tudo isto o povo entretém-se com intriga (a «bilhardice») uns contra os
outros. O único que nos parece ter um comportamento irrepreensível é o
feiticeiro. O merceeiro, o leiteiro, roubam «à má cara», um na balança e o
outro junta água ao leite que vende porta à porta. Entretanto, divertem-se com
as suas amantes («amigas») nos palheiros ou nas casas sem maridos emigrados ou
viúvas.
A imagem que
passa do povo em geral é negativa. São roubados, explorados, mas também à sua
medida fazem o mesmo, uns contra outros. A honestidade e a manhosice do povo
madeirense saem bem escarrapachadas sobre a tela. Tudo isto a coberto de uma
sombra religiosa, que se manifesta nos diálogos, através das várias expressões
que são invocadas para exorcizar a maldade, a intriga e as malfeitorias que
acompanham o quotidiano do povo.
São confrangedores alguns papéis. Por
exemplo, o de Alberto João Jardim (o pastor) e de João Carlos Abreu (o
barbeiro). Compreende-se a necessidade do chamariz propagandístico do filme,
mas não seriam necessários.
Não posso deixar de destacar com entusiasmo as imagens aéreas sobre a paisagem da Calheta e a banda sonora. Belíssimo.
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