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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Uma Frase que não pertence ao Papa Francisco circula na internet

A frase, ou seja, a omelete de frases atribuídas erroneamente ao Papa Francisco, é esta:
«Não é necessário acreditar em Deus para ser uma boa pessoa. De certa forma, a ideia tradicional de Deus não é actualizada. Uma pessoa pode ser espiritual, mas não religioso. Não há necessidade de ir a igreja e dar dinheiro. Para muitos, a natureza pode ser uma igreja. Algumas das melhores pessoas da história não acreditava em Deus, enquanto muitos dos piores actos foram feitos em seu nome». 
É um conjunto de frases que se apresenta inteiramente desconexo e por sinal também dizem o contrário daquilo que o autor desta omelete pretendeu afirmar. Como conjunto não tem sentido nenhum, porque são frases que não se ligam entre si e não fazem parte de ninguém parágrafo de nenhum discurso, pregação ou catequese do Papa Francisco. Foi escrita por alguém que se serviu de algumas comunicações do Papa para elaborar a frase da forma com se apresenta.
Quando a encontrei, sem que lhe tenha dado muita atenção, partilhei-a no facebook, embora ainda tenha ficado parado um pouco a pensar que não podia concordar com tudo o que ali estava, mas algumas frases faziam sentido e que só por isso devia partilhar, para suscitar a reflexão e o debate. Porém, um comentário nesta mesma publicação fez soar a campainha na minha cabeça. Dizia mais ou menos isto: «Gostava de ler o texto na íntegra onde está esta frase». De facto não existe texto nenhum, a frase circula solta, sem contexto e erroneamente atribuída ao Papa Francisco. Por isso, lá fui investigar um pouco e descobri vários textos que desmontam a frase e colocam as coisas no seu devido lugar. Baseando-me num texto em particular de Raúl Llusá, num blogue que se chama «Analítica hoy», procuro escalpelizar aqui no banquete um merecido esclarecimento acerca deste conjunto de frases.
Vamos então a frase por frase:

«Não é necessário acreditar em Deus para ser uma boa pessoa»
Esta frase não existe em nenhum lado. A única coisa mais parecida com isto está num parágrafo da carta que Francisco escreveu a Eugenio Scalfari, fundador e diretor do jornal italiano La Repubblica, um intelectual de esquerda e ateu, um descrente com quem o papa estabeleceu um diálogo honesto e rico, que poderia enfim permitir esta conclusão, embora o Papa vá muito mais longe. O Papa diz a Scalfari: «Antes de mais nada, pergunta-me se o Deus dos cristãos perdoa a quem não acredita nem procura acreditar. Admitido como dado fundamental que a misericórdia de Deus não tem limites quando alguém se Lhe dirige com coração sincero e contrito, para quem não crê em Deus a questão está em obedecer à própria consciência: acontece o pecado, mesmo para aqueles que não têm fé, quando se vai contra a consciência. De facto, ouvir e obedecer a esta significa decidir-se diante do que é percebido como bem ou como mal; e é sobre esta decisão que se joga a bondade ou a maldade das nossas acções».

A frase «Não é necessário acreditar em Deus para ser uma boa pessoa» é uma frase que reflete uma realidade, já implicitamente reconhecida pelo Concílio Vaticano II, no n.º 16 da Constituição Apostólica Lumen Gentium, que diz a respeito dos incrédulos: «Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida recta».
Acreditar em Deus não é necessário, certamente, para ser uma boa pessoa, porque a experiência nos mostra diariamente que existem bons e maus crentes como existem bons e maus descrentes. A fé só por si não faz uma boa pessoa, se não for aperfeiçoada pela prática do amor. A fé isolada pode ser (e na verdade muitas vezes é) uma maneira individualista da salvação, sem qualquer réstia de conexão com os outros.
Face à frase papal parece que é um convite para não acreditar em Deus ou parece que o Papa torna redutor a importância de acreditar em Deus, o que entra claramente em confronto com a catequese permanente do Papa.

«De certa forma, a ideia tradicional de Deus não é actualizada»
Antes é preciso termos como luz à partida esta ideia do Evangelho: «Ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aqueles a quem o Filho o quiser revelar» (Mateus 11:27).
Deus é o mistério, o inominável. «Uma janela sempre aberta», se quisermos utilizar uma expressão muito feliz de Tomás Halik. Mas várias vezes Jesus foi mostrando com a sua prática de que «Deus é amor», que se expressa pleno de misericórdia em cada contexto e em cada pessoa. Segundo esta frase parece que o Papa renega toda a tradição da Igreja que considerou Deus imutável, inominável e absoluto. Precisamente, a partir daí os seus gestos, e a sua catequese vão demonstrando que Deus é tudo isso, mas que o Seu Mistério de amor está presente na vida concreta e convoca-nos a todos para a prática do amor que recebe contornos e nuances sempre novos e próprias de cada tempo histórico da humanidade.


«Uma pessoa pode ser espiritual, mas não religioso»
Há muita religião que não tem nada de espiritual e muita espiritualidade sem nada de religião. Basta ver o que surge por este mundo fora. Os grupos travestidos de religiosos ou de espiritualidade são como cogumelos. Todos com bons propósitos, mas com uma prática completamente desvirtuada e que se regem por fins que nada são benéficos para o bem comum. Muita religião é pura manipulação de consciências e meios satânicos de extorsão da dignidade das pessoas e do seu dinheiro.
Porém, esta afirmação descreve uma realidade muito comum nos nossos dias. Há pessoas muito ricas espiritualmente, mas que dizem não acredito num Deus transcendente, na vida eterna e muito menos em qualquer religião em particular.  
Mas, acredito que o Papa ensina continuamente a bondade da religião, se assim não fosse, não seria campeão no diálogo inter religioso… Quer dizer então que o autor deste composto de frases se aproveitou da autoridade do Papa para fundamentar a sua forma de viver, o seu pensar e o seu não acreditar. Das catequeses do Papa Francisco descobrimos que ama todos, crentes ou não, religiosos ou não. O seu ensinamento é claro, Cristo, o Deus-homem, é um exemplo do homem religioso, e a Igreja convida todos os homens a imitar e a seguir a Cristo.

«Não há necessidade de ir a igreja e dar dinheiro»
Esta é a que discordei logo na primeira vez que li a omelete. Dá a ideia de que não é preciso ir à Igreja (templo) e dar dinheiro para ser boa gente. É preciso ter em conta que as atitudes falam mais alto e vão mais longe do que os considerandos ou as razões. Por isso, «a fé sem obras é morta» (Tg 2, 26), já ensina a Epístola de São Tiago. O que se dá com amor é mais forte do que qualquer discurso. Dar aos pobres, ajudar quem precisa tem muita força e se emane da força do acreditar mais ainda dá consistência à fé que se professa, engrandece a religião e a Igreja onde se está inseridos.
Por isso, esta frase serve para justificar a demissão face ao bem comum e face aos mais necessitados. Por isso, a catequese papal é precisamente ao contrário: a caridade, a partilha é a base do ensino papal, e é também um ensinamento de Cristo e da Igreja. Obviamente, que está errado se vamos à Igreja deitar esmolas para «comprar» a salvação ou um cantinho do céu. Neste sentido a frase está perfeitamente correcta.
O dinheiro dado à Igreja, particularmente, o que é depositado nas paróquias, serve para várias coisas que ficam sempre à vista de todos: as obras de caridade comunitárias, a manutenção paroquial do templo (água, luz, restauro de portas, paredes e as obras de arte e tudo o que é necessário para que uma Igreja paroquial funcionar para o bem espiritual daqueles que ela se achegam para viver a sua vida espiritual), não se esqueça que as igrejas também pagam impostos, senão for directos paga o indirecto como qualquer entidade e cidadão, e as paróquias se têm serviços, implicam despesas, daí que tais serviços impliquem movimentação de bens materiais, particularmente, o dinheiro.

«Para muitos, a natureza pode ser uma igreja»
Não parece ser uma frase assim dita com esta clareza pelo Papa Francisco. Mas a frase manifesta uma realidade para todos nós e que podemos encontrar na mensagem do Papa Francisco. A natureza reflete, em muitos casos, o esplendor e majestade de Deus e o seu amor pelas suas criaturas. Podemos facilmente fazer oração no ambiente natural. Mas é sempre perigoso endeusar qualquer realidade. Têm sido insistentes os apelos do Papa Francisco em relação aos atentados contra a natureza, que precisa de cuidados urgentes, para que seja travada a sua exploração desmedida. Nada disto nos deve fazer considerar que o Papa defende que a natureza se torne uma igreja ou uma religião ou um deus. É importante que se faça nossa preocupação do Papa para que salvemos aquele ambiente, «a nossa casa comum», onde vivemos todos, para deixarmos às gerações vindouras um ambiente respirável e equilibrado para que a vida seja possível ser vivida com dignidade e felicidade.

«Algumas das melhores pessoas da história não acreditava em Deus, enquanto muitos dos piores atos foram feitos em seu nome»
É verdade. Mas também é verdade que, em nome do ateísmo e do desprezo da religião vieram os piores genocídios como o Holocausto nazi contra o povo judeu, com 6 milhões de mortes; os massacres estalinistas de camponeses (10 milhões de mortos), os genocídios do Khmer Vermelho no Camboja de Pol Pot e todo os outros, que a história da humanidade tem sido pródiga em fazer surgir, infelizmente, com crenças ou sem elas.
O mais certo sim é constatarmos, que muitos dos actos monstruosos cometidos «em nome de Deus» foram realmente cometidos por outros interesses, más crenças escondem o nome e o verdadeiro conteúdo de Deus para cometer atrocidades. Esta é que a verdade, que é preciso ter em conta.
Mas, sim é verdade que muitas das melhores pessoas da história não se diziam crentes, mas muitos outros igualmente excelentes pessoas foram crentes convictos.
Por fim, porque surge esta omelete de frases? – Porque pretende minimizar, sob a autoridade do Papa, que não é necessária nenhuma religião, nada de fé, muito menos templos e menos ainda cultos.
Mas, toda a humanidade tem o direito de acreditar ou não. Não existe é o direito de alguém atribuir a alguém ditos, fazeres ou coisas sem ter dito, feito ou reclamado propriedade sobre tais coisas. A distorção não é legítima e se levada à prática com segundas intenções é profundamente injusta, ainda mais se reparamos que a prática quotidiana da entidade que está a ser vítima nada tem que ver com a realidade distorcida.
Peço perdão por ter feito ecoar ainda mais longe este composto de frases e agradeço a quem me fez suscitar uma procura e reflexão mais aturadas sobre o assunto.

1 comentário:

Churropicoterna disse...

No es del papa, pero es una verdad innegable, gilipollas.