A frase, ou seja, a omelete de frases atribuídas
erroneamente ao Papa Francisco, é esta:
«Não é necessário acreditar em Deus para
ser uma boa pessoa. De certa forma, a ideia tradicional de Deus não é actualizada.
Uma pessoa pode ser espiritual, mas não religioso. Não há necessidade de ir a
igreja e dar dinheiro. Para muitos, a natureza pode ser uma igreja. Algumas das
melhores pessoas da história não acreditava em Deus, enquanto muitos dos piores
actos foram feitos em seu nome».
É um conjunto de frases que se apresenta
inteiramente desconexo e por sinal também dizem o contrário daquilo que o
autor desta omelete pretendeu afirmar. Como conjunto não tem sentido nenhum, porque são
frases que não se ligam entre si e não fazem parte de ninguém parágrafo de
nenhum discurso, pregação ou catequese do Papa Francisco. Foi escrita por
alguém que se serviu de algumas comunicações do Papa para elaborar a frase da
forma com se apresenta.
Quando a encontrei, sem que lhe tenha
dado muita atenção, partilhei-a no facebook, embora ainda tenha ficado parado um pouco a
pensar que não podia concordar com tudo o que ali estava, mas algumas frases
faziam sentido e que só por isso devia partilhar, para suscitar a reflexão e o
debate. Porém, um comentário nesta mesma publicação fez soar a campainha na
minha cabeça. Dizia mais ou menos isto: «Gostava de ler o texto na íntegra onde
está esta frase». De facto não existe texto nenhum, a frase circula solta, sem
contexto e erroneamente atribuída ao Papa Francisco. Por isso, lá fui
investigar um pouco e descobri vários textos que desmontam a frase e colocam as
coisas no seu devido lugar. Baseando-me num texto em particular de Raúl Llusá,
num blogue que se chama «Analítica hoy», procuro escalpelizar aqui no banquete um
merecido esclarecimento acerca deste conjunto de frases.
Vamos então a frase por frase:
«Não é necessário acreditar em Deus para ser uma boa pessoa»
Esta frase não existe em nenhum lado. A única coisa mais parecida com isto está
num parágrafo da carta que Francisco escreveu a Eugenio Scalfari, fundador e
diretor do jornal italiano La Repubblica, um intelectual de esquerda e ateu, um
descrente com quem o papa estabeleceu um diálogo honesto e rico, que poderia enfim
permitir esta conclusão, embora o Papa vá muito mais longe. O Papa diz a Scalfari:
«Antes de mais nada, pergunta-me se o Deus dos cristãos perdoa a quem não
acredita nem procura acreditar. Admitido como dado fundamental que a
misericórdia de Deus não tem limites quando alguém se Lhe dirige com coração
sincero e contrito, para quem não crê em Deus a questão está em obedecer à
própria consciência: acontece o pecado, mesmo para aqueles que não têm fé,
quando se vai contra a consciência. De facto, ouvir e obedecer a esta significa
decidir-se diante do que é percebido como bem ou como mal; e é sobre esta
decisão que se joga a bondade ou a maldade das nossas acções».
A frase «Não é necessário acreditar em
Deus para ser uma boa pessoa» é uma frase que reflete uma realidade, já
implicitamente reconhecida pelo Concílio Vaticano II, no n.º 16 da Constituição
Apostólica Lumen Gentium, que diz a respeito dos incrédulos: «Com efeito,
aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja,
procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da
graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência,
também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os
auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao
conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por
levar uma vida recta».
Acreditar em Deus não é necessário,
certamente, para ser uma boa pessoa, porque a experiência nos mostra
diariamente que existem bons e maus crentes como existem bons e maus descrentes.
A fé só por si não faz uma boa pessoa, se não for aperfeiçoada pela prática do
amor. A fé isolada pode ser (e na verdade muitas vezes é) uma maneira
individualista da salvação, sem qualquer réstia de conexão com os outros.
Face à frase papal parece que é um
convite para não acreditar em Deus ou parece que o Papa torna redutor a
importância de acreditar em Deus, o que entra claramente em confronto com a
catequese permanente do Papa.
«De certa forma, a ideia tradicional de Deus não é actualizada»
Antes é preciso termos como luz à partida esta ideia do Evangelho: «Ninguém
conhece o Pai senão o Filho, e aqueles a quem o Filho o quiser revelar» (Mateus
11:27).
Deus é o mistério, o inominável. «Uma
janela sempre aberta», se quisermos utilizar uma expressão muito feliz de Tomás
Halik. Mas várias vezes Jesus foi mostrando com a sua prática de que «Deus é
amor», que se expressa pleno de misericórdia em cada contexto e em cada pessoa.
Segundo esta frase parece que o Papa renega toda a tradição da Igreja que
considerou Deus imutável, inominável e absoluto. Precisamente, a partir daí os
seus gestos, e a sua catequese vão demonstrando que Deus é tudo isso, mas que o
Seu Mistério de amor está presente na vida concreta e convoca-nos a todos para
a prática do amor que recebe contornos e nuances sempre novos e próprias de
cada tempo histórico da humanidade.
«Uma pessoa pode ser espiritual, mas não religioso»
Há muita religião que não tem nada de espiritual e muita espiritualidade sem nada
de religião. Basta ver o que surge por este mundo fora. Os grupos travestidos
de religiosos ou de espiritualidade são como cogumelos. Todos com bons propósitos,
mas com uma prática completamente desvirtuada e que se regem por fins que nada
são benéficos para o bem comum. Muita religião é pura manipulação de
consciências e meios satânicos de extorsão da dignidade das pessoas e do seu
dinheiro.
Porém, esta afirmação descreve uma
realidade muito comum nos nossos dias. Há pessoas muito ricas espiritualmente,
mas que dizem não acredito num Deus transcendente, na vida eterna e muito menos
em qualquer religião em particular.
Mas, acredito que o Papa ensina continuamente
a bondade da religião, se assim não fosse, não seria campeão no diálogo inter
religioso… Quer dizer então que o autor deste composto de frases se aproveitou
da autoridade do Papa para fundamentar a sua forma de viver, o seu pensar e o
seu não acreditar. Das catequeses do Papa Francisco descobrimos que ama todos,
crentes ou não, religiosos ou não. O seu ensinamento é claro, Cristo, o
Deus-homem, é um exemplo do homem religioso, e a Igreja convida todos os homens
a imitar e a seguir a Cristo.
«Não há necessidade de ir a igreja e dar dinheiro»
Esta é a que discordei logo na primeira
vez que li a omelete. Dá a ideia de que não é preciso ir à Igreja (templo) e
dar dinheiro para ser boa gente. É preciso ter em conta que as atitudes falam
mais alto e vão mais longe do que os considerandos ou as razões. Por isso, «a
fé sem obras é morta» (Tg 2, 26), já ensina a Epístola de São Tiago. O que se
dá com amor é mais forte do que qualquer discurso. Dar aos pobres, ajudar quem
precisa tem muita força e se emane da força do acreditar mais ainda dá consistência
à fé que se professa, engrandece a religião e a Igreja onde se está inseridos.
Por isso, esta frase serve para
justificar a demissão face ao bem comum e face aos mais necessitados. Por isso,
a catequese papal é precisamente ao contrário: a caridade, a partilha é a base
do ensino papal, e é também um ensinamento de Cristo e da Igreja. Obviamente,
que está errado se vamos à Igreja deitar esmolas para «comprar» a salvação ou
um cantinho do céu. Neste sentido a frase está perfeitamente correcta.
O dinheiro dado à Igreja,
particularmente, o que é depositado nas paróquias, serve para várias coisas que
ficam sempre à vista de todos: as obras de caridade comunitárias, a manutenção
paroquial do templo (água, luz, restauro de portas, paredes e as obras de arte
e tudo o que é necessário para que uma Igreja paroquial funcionar para o bem
espiritual daqueles que ela se achegam para viver a sua vida espiritual), não
se esqueça que as igrejas também pagam impostos, senão for directos paga o
indirecto como qualquer entidade e cidadão, e as paróquias se têm serviços,
implicam despesas, daí que tais serviços impliquem movimentação de bens
materiais, particularmente, o dinheiro.
«Para muitos, a natureza pode ser uma igreja»
Não parece ser uma frase assim dita com
esta clareza pelo Papa Francisco. Mas a frase manifesta uma realidade para
todos nós e que podemos encontrar na mensagem do Papa Francisco. A natureza
reflete, em muitos casos, o esplendor e majestade de Deus e o seu amor pelas
suas criaturas. Podemos facilmente fazer oração no ambiente natural. Mas é
sempre perigoso endeusar qualquer realidade. Têm sido insistentes os apelos do
Papa Francisco em relação aos atentados contra a natureza, que precisa de
cuidados urgentes, para que seja travada a sua exploração desmedida. Nada disto
nos deve fazer considerar que o Papa defende que a natureza se torne uma igreja
ou uma religião ou um deus. É importante que se faça nossa preocupação do Papa para
que salvemos aquele ambiente, «a nossa casa comum», onde vivemos todos, para
deixarmos às gerações vindouras um ambiente respirável e equilibrado para que a
vida seja possível ser vivida com dignidade e felicidade.
«Algumas das melhores pessoas da história não acreditava em Deus, enquanto muitos dos piores atos foram feitos em seu nome»
É verdade. Mas também é verdade que, em nome do ateísmo e do desprezo da
religião vieram os piores genocídios como o Holocausto nazi contra o povo
judeu, com 6 milhões de mortes; os massacres estalinistas de camponeses (10
milhões de mortos), os genocídios do Khmer Vermelho no Camboja de Pol Pot e todo
os outros, que a história da humanidade tem sido pródiga em fazer surgir,
infelizmente, com crenças ou sem elas.
O mais certo sim é constatarmos, que
muitos dos actos monstruosos cometidos «em nome de Deus» foram realmente
cometidos por outros interesses, más crenças escondem o nome e o verdadeiro
conteúdo de Deus para cometer atrocidades. Esta é que a verdade, que é preciso
ter em conta.
Mas, sim é verdade que muitas das
melhores pessoas da história não se diziam crentes, mas muitos outros igualmente
excelentes pessoas foram crentes convictos.
Por fim, porque surge esta omelete de
frases? – Porque pretende minimizar, sob a autoridade do Papa, que não é
necessária nenhuma religião, nada de fé, muito menos templos e menos ainda
cultos.
Mas, toda a humanidade tem o direito de
acreditar ou não. Não existe é o direito de alguém atribuir a alguém ditos,
fazeres ou coisas sem ter dito, feito ou reclamado propriedade sobre tais
coisas. A distorção não é legítima e se levada à prática com segundas intenções
é profundamente injusta, ainda mais se reparamos que a prática quotidiana da
entidade que está a ser vítima nada tem que ver com a realidade distorcida.
Peço perdão por ter feito ecoar ainda
mais longe este composto de frases e agradeço a quem me fez suscitar uma
procura e reflexão mais aturadas sobre o assunto.
1 comentário:
No es del papa, pero es una verdad innegable, gilipollas.
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