Este dia é sempre sombrio mesmo que se
levante um sol radioso que aquece os rostos e a alma, como é sempre próprio da
função dos raios solares. Não sei se devo dizer sombrio ou antes um dia que nos
deprime um pouco e que nos deixa acabrunhados, com o rosto caído no chão. Era o
dia das almas, como se dizia frequentemente na casa da minha infância, onde se
preferia celebrar as almas sem pensar em finados, mortos ou defuntos. O tempo
fica normalmente nublado e com cara de inverno, porque se tinha em conta que as
lágrimas das pessoas eram tantas que se derramavam dos céus. Nunca percebi bem se
eram as almas que habitavam já o céu que choravam ou se eram as almas que
habitavam o mundo terreno do corpo, que choravam com saudades dos familiares
defuntos...
Na casa dos meus avós neste dia o
silêncio falava mais alto, era um dia sempre esquisito, como sinto que ainda é
hoje. Era uma Sexta Feira Santa, caísse o dia 2 novembro em qualquer dia da
semana. não se podia falar muito alto, o avô logo lembrava dos que já partiram,
as almas. Por isso, devo continuar com essa voz do avô lá bem no fundo da alma
para me fazer lembrar que este dia pertence aos mortos e que nós os vivos
devemos respeitar devotamente o dia deles.
Não me lembro de haver a tradição da
família organizar excursões ao cemitério neste dia. Parece que ninguém tinha
esse hábito tão corriqueiro e tão comum nos nossos tempos, ir ao cemitério até
junto das sepulturas dos familiares, lavar-lhe as jarras e colocar flores
novas. Não que isso seja mal nenhum, faz bem ao ambiente e embeleza por fora o
que está escondido que se fosse visto seria tenebroso e horripilante. Antes
assim, as flores que se manterão vivas e dignas de serem apreciadas pelos vivos
algumas horas e, se não fosse por outra razão, que seja por esta, contribui
para o movimento da economia de alguém.
Naquela casa e naquele tempo primeiro
quando desperta a consciência do que somos e dos outros, o dia das almas, além
de nos remeter ao silêncio, servia para rezarmos especialmente pelas almas dos
nossos parentes, amigos e conhecidos. As almas todas entravam no pensamento e
na oração, especialmente, aquelas que se acreditava estarem no purgatório.
Hoje, uma realidade meio esquecida. Pois consistia em rezar pelas almas que
ainda não estavam na comunhão do Reino dos Céus, mas que pouco faltava, tinham apenas
esse último patamar da purificação antes de tomaram parte na luz eterna. Não
raras vezes se rezava pela alma mais próxima do céu. Esta devoção às almas
intensificava-se neste dia de modo especial. E como isso imponha respeito! Hoje,
chamo a esse ambiente medo, que nos ponha em sentido e em silêncio perante
aquela seriedade devocional que aquelas almas deste mundo tanto faziam questão
de nos lembrar.
Salvo seja que se acreditava que havia
almas que não precisavam de oração, porque tinham levado uma vida tão sã e tão
fiel à verdade que entravam logo no Reino de Deus e já podiam ver Nosso Senhor
face a face. As nossas preces dirigiam-se às almas infelizes do inferno e do
purgatório, para que este auxílio e consolo, lhes permitissem a purificação,
Deus lhes encurtasse o tempo de purgação e as conduzisse definitivamente à
glória da felicidade eterna.
Não sei muito sobre tudo isto que o tempo
nos fez viver e que provavelmente deve ter feito homens e mulheres
extraordinários e quiçá grandes santos. O mais interessante é notar que antes
como hoje, este dia é especialmente esquisito e que a tentativa para o sanear não
conseguiu apagar a sombra que se abate sobre nós, por exemplo, os halloween's,
a retirada do feriado de 1 de novembro, as críticas severas contra a corrida
aos cemitérios, a ridicularização das almas do outro mundo, a negligência em
relação ao inferno e ao purgatório, deixando-se apenas o céu e, por fim, a mercantilização
da morte em todas as suas vertentes.
Enfim, termino com a história dos três
amigos.
Havia um homem
que tinha três amigos, aos quais dava muito apreço e atenção. Um dia este homem
foi avisado que se preparasse a fim de comparecer perante o juiz.
O homem teve
receio de ir sozinho. Lembrou-se então dos seus três amigos. Talvez pudessem
acompanhá-lo e quem sabe, até defendê-lo diante do juiz. Afinal de contas,
amigo é para isso mesmo, ou seja, para as horas de aperto e para as ocasiões.
O homem mandou
chamar o primeiro, a quem expôs o seu problema. Ele, porém, respondeu: «Pouca
coisa posso fazer por ti. Mas o que posso, eu o farei. Pago as despesas da
viagem». Era pouco, realmente. O que mais interessava, era a companhia.
Mandou vir o segundo
amigo, que lhe respondeu meio pesaroso: «Ir contigo até ao juiz, não posso.
Entende, não é? Cada um tem os seus problemas particulares, onde ninguém deve
entrar. Mas vou contigo até à porta do tribunal. Depois venho embora».
Também não servia. O momento mais difícil e crucial era o inquérito e o
julgamento do juiz. Ali é que ele precisava de companhia e de todo o apoio.
Já quase sem
esperança, pediu que viesse o terceiro amigo. Este respondeu com calma e segurança:
«Sim, eu posso ir contigo. Posso acompanhar-te e ficar ao teu lado durante
o interrogatório»...
Moral da história: o primeiro amigo, é o dinheiro. Paga o caixão quando
morremos; o segundo, é a família, acompanha-nos até à sepultura. Depois volta
para casa. Nada mais pode fazer, a não ser, rezar pelos defuntos; o terceiro
amigo, são as boas obras que praticamos. Somente estas nos acompanham até à
eternidade. Somente elas nos defendem perante o juiz e no caso de ser depois da
morte, perante Deus, porque segundo São Paulo: «Teremos de
comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme
o bem ou o mal que tiver feito enquanto esteve no corpo» (2 Cor 5,10).
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