Última
parte do discurso do Papa Francisco no
encontro com o Comité de Coordenação do Celam no Centro de Estudos do Sumaré…
Nota: Clareza e fundamentação q. b. no
«ver, julgar e agir». Obviamente que as referências circunstanciais são
aplicadas à América Latina, mas depois de lermos serve como uma luva para a
Igreja na Europa, no mundo, na Diocese, na Paróquia, no grupo ou movimento qualquer…
Que estes desafios nos toquem a todos!
Algumas orientações eclesiológicas
1. O discipulado-missionário que Aparecida propôs às Igrejas da América
Latina e do Caribe é o caminho que Deus quer para “hoje”. Toda a projeção
utópica (para o futuro) ou restauracionista (para o passado) não é do espírito
bom. Deus é real e se manifesta no “hoje”. A sua presença, no passado, se nos
oferece como “memória” da saga de salvação realizada quer em seu povo quer em
cada um de nós; no futuro, se nos oferece como “promessa” e esperança. No
passado, Deus esteve lá e deixou sua marca: a memória nos ajuda encontrá-lo; no
futuro, é apenas promessa... e não está nos mil e um “futuríveis”. O “hoje” é o
que mais se parece com a eternidade; mais ainda: o “hoje” é uma centelha de
eternidade. No “hoje”, se joga a vida eterna.
O discipulado missionário é vocação: chamada e
convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado
missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a
sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a
transcendência da missão. Não admite a autorreferencialidade: ou refere-se a
Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito
que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre
(que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio.
Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo
missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para
as periferias... incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No
anúncio evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e,
habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um
descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é
enviado para as periferias existenciais.
2. A Igreja é instituição, mas, quando se erige em “centro”, se funcionaliza
e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG. Então, a Igreja pretende ter luz
própria e deixa de ser aquele “mysterium lunae” de que nos falavam os Santos
Padres.
Torna-se cada vez mais autorreferencial, e se enfraquece a sua necessidade de
ser missionária. De “Instituição” se transforma em “Obra”. Deixa de ser Esposa,
para acabar sendo Administradora; de Servidora se transforma em “Controladora”.
Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, facilitadora da fé e não
controladora da fé.
3. Em Aparecida, verificam-se de forma relevante duas categorias pastorais,
que surgem da própria originalidade do Evangelho e nos podem também servir de
orientação para avaliar o modo como vivemos eclesialmente o discipulado
missionário: a proximidade e o encontro. Nenhuma das duas é nova, antes
configuram a maneira como Deus se revelou na história. É o “Deus próximo” do
seu povo, proximidade que chega ao máximo quando Ele encarna. É o Deus que sai ao
encontro do seu povo. Na América Latina e no Caribe, existem pastorais
“distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as
condutas, os procedimentos organizacionais... obviamente sem proximidade, sem
ternura, nem carinho.
Ignora-se a "revolução da ternura", que provocou a encarnação do
Verbo. Há pastorais posicionadas com tal dose de distância que são incapazes de
conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Este
tipo de pastoral pode, no máximo, prometer uma dimensão de proselitismo, mas
nunca chegam a conseguir inserção nem pertença eclesial. A proximidade cria
comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo
e cria uma cultura do encontro. Uma pedra de toque para aferir a proximidade e
a capacidade de encontro de uma pastoral é a homilia. A pastoral é, em última
instância, o exercício de maternidade da Igreja. Como são as nossas homilias?
Estão próximas do exemplo de Nosso Senhor, que “falava como quem tem
autoridade”, ou são meramente prescritivas, distantes, abstratas?
4. Quem guia a pastoral, a Missão Continental (seja programática seja
paradigmática), é o bispo. Ele deve guiar, que não é o mesmo que comandar. Além
de assinalar as grandes figuras do episcopado latino-americano que todos nós
conhecemos, gostaria de acrescentar aqui algumas linhas sobre o perfil do
Bispo, que já disse aos Núncios na reunião que tivemos em Roma. Os bispos devem
ser pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão:
pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior
como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e
austeridade de vida. Homens que não tenham “psicologia de príncipes”. Homens
que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na
expectativa de outra. É o fenômeno dos bispos polígamos. Estão casados com uma,
mas esperando ver quando terão a promoção. Homens capazes de vigiar sobre o
rebanho que lhes foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido:
vigiar sobre o seu povo, atento a eventuais perigos que o ameacem, mas
sobretudo para cuidar da esperança: que haja sol e luz nos corações. Homens
capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo. E o
lugar onde o bispo pode estar com o seu povo é triplo: ou à frente para indicar
o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou então
atrás para evitar que alguém se desgarre mas também, e fundamentalmente, porque
o próprio rebanho tem o seu olfato para encontrar novos caminhos.
Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa do bispo, mas simplesmente
acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta afirmação, que estamos um pouco
atrasados no que a Conversão Pastoral indica. Convém que nos ajudemos um pouco
mais a dar os passos que o Senhor quer que cumpramos neste 'hoje' da América
Latina e do Caribe. E seria bom começar por aqui.
Agradeço-lhes a paciência de me ouvirem. Desculpem a desordem do discurso e
lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa vocação de servidores do
povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se exerce e mostra a autoridade:
na capacidade de serviço. Muito obrigado!"
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