Nas tragédias onde está Deus?
Quando acontecem as
tragédias e se nos afectam com maior proximidade, salta-nos logo as perguntas
do costume: onde está Deus? Porque permite Deus, se é todo-poderoso, as desgraças
que tanto sofrimento provoca?
Por isso, reparei que
por estes dias estas questões estão bem presentes na nossa cabeça, agora que
fomos outra vez atingidos por tanta chuva, que provocou medo, vários
desalojados, sofrimento e um transtorno impressionante a todos os níveis. Basta
que se converse com algumas pessoas para nos apercebermos destas inquietações.
As redes sociais também têm feito eco desta perplexidade.
Perante estas perguntas
habituais nos momentos de tragédia lembro-me sempre do episódio que se passou
com Elie
Wiesel no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Diz assim o relato: «voltávamos
do trabalho uma tarde e vimos três forcas erguidas na praça do apelo. Ao nosso
redor, os S.S., com metralhadoras apontadas, a cerimónia tradicional. Três
condenados algemados. Um deles, uma criança, anjo dos olhos tristes [...]. Os
três condenados subiram as cadeiras, juntos. Nos três pescoços foram colocados,
ao mesmo tempo, os nós corrediços. – Viva a liberdade! – Gritaram os dois
adultos. O pequeno estava calado.
– Onde está o Bom Deus?
Onde está? – Perguntou alguém atrás de mim.
A um aceno do chefe do
campo, as cadeiras foram retiradas [...]. Depois começou o desfile. Os dois
adultos morreram logo. A língua pêndula, engrossada, arroxeada. Mas a terceira
corda não estava imóvel, embora levemente, a criança ainda vivia... Mais de
meia hora ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando sob os nossos
olhos. Ainda estava vivo quando passei na sua frente. A língua ainda estava
vermelha, ainda havia luz nos seus olhos. Atrás de mim ouvi o mesmo homem
perguntar:
– Onde está Deus,
então?
E eu sentia em mim uma
voz que lhe respondia:
– Onde está? Ei-lo:
está pendurado ali, naquela forca...» (Elie Wiesel: «A Noite»).
Face a esta reflexão do
pensador judeu, somos levados a concluir que Deus está em cada uma das vítimas,
na família desalojada, na idosa que verte lágrimas de dor porque perdeu tudo o
que tinha, fruto de uma vida dura para construir a pequena riqueza que a
abrigava e a fazia feliz naquele lugar que a água em abundância cerceou sem
piedade. Deus está naquele herói que foi atingido por uma pedra e o «crime» que
cometia era ajudar a limpar os caminhos, as casas que a intempérie abafou. Deus
está na criança que pede pão e roupa. Está em todos os lugares onde o sofrimento,
a solidão, a violência, a desordem, a miséria e tudo o que faz este mundo
parecer um inferno, pondo em causa a vida com dignidade. Deus está…
Face a esta certeza
salta-nos o pensamento de São Paulo e do profeta Isaías, «Ó Homem, quem és tu
que queres discutir com Deus?» (Rm 9.20s), ou no profeta Isaías: «Pode um vaso
de terra disputar com quem o fabricou?» (Is 45,9). Será por causa disto que a
filosofia moderna sentencia sobre Deus o seguinte: «Deus está morto, e foi a
sua compaixão pelos homens que o matou». («Assim falou Zaratustra» – Nietzsche).
Não nos submetendo a
nenhuma máxima sentenciosa, somos agora levados a pensar que Deus está em todos
os corações que se compadecem com a desgraça dos outros, por eles erguem a sua
oração, saem de si mesmos e vão ao encontro com a sua amizade, a partilha, a
ajuda. Deus está aí no amor que se dá sem condições. Deus está nas autoridades
que assumem com verdade as suas responsabilidades e tudo fazem para minorarem a
desgraça de quem perdeu o chão. Deus está em todo aquele que não fica indiferente
à desgraça alheia. Deus está…
Pode estar no pequeno
sinal, no sorriso, no abraço fraterno, no pão que mata a fome, na água que na
hora H é vida que sacia a sede, no singelo pano que abriga do frio, na
companhia que quebra a solidão, no aperto de mão que ajuda a levantar do chão e
naquela mão que afaga os cabelos de todo o corpo que se contorce com por causa
da dor… Por isso, descobrimos em Pascal a síntese daquilo que nos serve quanto à
descoberta da presença de Deus em cada momento da vida. Digo em cada momento,
seja bom ou seja mau, para que não nos lembremos Dele só quando nos apertam os
calos. Já diz o ditado, «só nos lembramos de Santa Bárbara na hora dos
trovões». O filósofo Pascal resume o que devemos crer: «Se consideramos só a
perfeição de Deus, caímos no desespero, e se consideramos só o homem, caímos no
orgulho. Enquanto que, somente considerando Cristo, ao mesmo tempo Deus e
Homem, podemos enfrentar lealmente toda a nossa fraqueza e a nossa miséria, no
horizonte de um amor misericordioso e pleno de esperança». In «Pensamentos» –
Pascal.
Uma palavra pode fazer
emergir o essencial de nós e podemos até perceber o que somos na desgraça e no
sucesso. Na tristeza e na alegria. Na infelicidade e na felicidade, na saúde e
na doença e em todos os dias da vida neste mundo… Numa palavra, em tudo e no
tudo que a vida deste mundo pode ser. Vejamos então:
«Para que tivéssemos a Luz, veio-te a faltar a
vista.
Para que tivéssemos a união, sentiste a separação do
Pai.
Para que possuíssemos a Sabedoria, fizeste-te
“ignorância”.
Para que nos revestíssemos da inocência, fizeste-te
“pecado”.
Para que Deus estivesse em nós, sentiste-o longe de
ti. In «Ideal
e Luz» – Chiara Lubich.
Neste caminho de
errâncias múltiplas somos tocados pelo desânimo, até pelo desespero, porque a
vida é frágil, inconstante e cheia de limitações. A natureza, também se desequilibra
fazendo da vida humana uma tristeza nalgumas ocasiões. No «Amor de todo amor» As
fontes de Taizé do Irmão Roger de Taizé, podemos ler: «Nem o
sofrimento, nem a angústia humana são desejados por Deus. Ele não se impõe.
Deixa-nos livres para amar ou não amar, para perdoar ou rejeitar o perdão. Mas
Deus nunca assiste passivamente ao sofrimento dos seres humanos. Ele sofre com
o inocente, vítima da incompreensível provação; Ele sofre com cada um. Existe
uma dor de Deus, um sofrimento do Cristo».
Mas, muita da dor
provocada pelas tragédias resulta da irresponsabilidade, da incúria, dos desmandos,
dos abusos, da violação dos espaços e das regras das forças da natureza. Então,
temos a factura que a natureza nos envia carregada com valores elevados de
destruição, desolação, sofrimento e morte.
Esta reflexão de Taizé
vem na senda do pensamento de São Paulo quando diz: «Nem a morte, nem a vida,
nem os anjos, nem os poderes celestiais, nem o presente, nem o futuro, nem as
forças cósmicas, nem a altura, nem a profundidade, nenhuma outra criatura pode
separar-nos do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor». (Rom 8,38 – trecho
completo Rom 8,18-39). Eis o que pode ser alguma luz que clarifica o
entendimento na incompreensibilidade que a existência sempre implica.
Porém, sempre que a
tragédia se faz sentir a perplexidade é sempre legítima, mas também que ao seu
lado se busque a serenidade. O mistério faz parte da existência e aprender a
conviver com ele será sempre o melhor argumento para encontrar algum sentido. Não
digo o «guarda-chuva» que nos dá alguma segurança, porque a chuva nem sempre cai
na vertical, algumas vezes cai torta de forma horizontal e na diagonal levada
pelo vento. Nestes momentos não há «guarda-chuva» que nos safe.
O seguinte pensamento
pode ajudar. Vejamos: «O facto de Deus deixar as vítimas morrerem é um
escândalo irrecuperável, e a fé em Deus tem que passar através deste escândalo.
Nesta situação, a única coisa que o crente pode fazer é aceitar que Deus está
na cruz, impotente como as vítimas, e interpretar essa impotência como o máximo
de solidariedade com elas. O anúncio missionário, entre a misericórdia e a
cruz, revela que o nosso Deus é vulnerável, sofredor e compassivo porque morre com
os crucificados da história» - disse o Pe. Giorgio Paleari – Mundo e
Missão (abril/2001).
Para
todos os momentos da vida e da história concreta da existência que nos mova o
seguinte: «Não te deixes vencer pelo
mal, vence antes o mal com o bem»,
Papa João Paulo II.
Imagens Google...
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