Para esta quarta feira, temos no Banquete da Palavra, Guida Vieira com um texto sobre a temática «Deus e Eu» com um texto exclusivo para os leitores deste site. Simplesmente brilhante... A fé é uma dúvida (Miguel de Unamuno), a Guida confirmou isso... Muito obrigado pelo seu belíssimo texto.
A minha relação com Deus tem sido, ao
longo da minha vida, uma espécie de um diálogo de surdos. Eu passo a vida a questionar,
mas Ele não me responde. Mesmo assim, consegui criar uma relação próxima, pois
sempre o tratei por tu e ele nunca se manifestou, nem contra nem a favor.
Quando era apenas uma criança e andava
na escola primária, acreditando piamente na sua existência, muitas vezes lhe
perguntava: ó meu Deus, por que razão eu e os meus irmãos, vamos descalços para
a escola e a maioria das restantes crianças vão calçadas? Por que razão temos
que comer aquela sopa horrível, com massa escura e milho, todos os dias, e a
maioria das outras crianças não? Estas interrogações muitas vezes foram
colocadas em redações que fazia na escola, e claro, a professora não dizia
nada. Estávamos nos anos cinquenta.
Quando cresci, continuando a acreditar,
e aos 17 anos fui ofendida por um padre num confessionário, voltei a
perguntar-lhe: Porque deixas que isto aconteça, em teu nome na tua casa? Mas Ele,
não só não me respondeu, como o tal padre continuou a ofender outras mais…
Continuei a crescer e a ver a pobreza das mulheres que, como a minha mãe,
trabalhavam até altas horas da noite para ganhar uns tostões que não davam para
nada, voltava a perguntar-lhe: Achas isto justo? E elas, e eu, e as minhas irmãs,
e as minhas familiares e amigas lá continuávamos a tentar melhorar a vida, mas
com as maiores carências do mundo.
Fui trabalhar para uma fábrica, conheci
outras realidades, algumas ainda piores que a minha, e as minhas perguntas não
tinham fim. Eu bem perguntava mas Ele nunca me respondia. Mesmo assim nunca
desisti de perguntar. A fé já não era tanta mas nunca desisti de O enfrentar
com as minhas interrogações.
Depois enfrentei a vida com os seus
acontecimentos que, em certos momentos, nem me davam tempo para O interrogar.
Foi uma luta dura, pessoal e colectiva. Trabalhava 48 horas por semana e
estudava à noite. Depois veio a luta reivindicativa, a conquista de direitos e
o tempo ia passando a uma grande velocidade, e o meu diálogo com Deus foi
rareando cada vez mais.
Agora que tenho mais tempo livre, dou
por mim novamente a interrogar. A perguntar. Porquê? Porquê? Porquê? Porque
deixas que a humanidade esteja a destruir-se a si própria? Porque deixas que
sejam sempre inocentes a serem vitimados? Porque deixas isto, aquilo e aquele
outro???…Ele não me responde, mas vou continuar a perguntar, porque não sou
pessoa de desistir de nada.
Guida
Vieira
2 comentários:
Cara Guida,
Permita que a trate assim. Conheço-a à muitos anos "de vista" e por causa do seu falecido companheiro. Gostei muito do seu artigo, de se expôr de uma forma simples e honesta tantos porquês! Com certeza não será única nessa relação com o Deus, de quem nunca entendemos o motivo do sofrimento das crianças na guerra, o sofrimento na doença, a fome, a solidão etc... Quem entrar no IPO ficará com toda a certeza frágil, confuso, outros procurarão na fé, o conforto que lhes proporcione um sentido para a vida ou para a morte. Eu vivi nos anos 60' na Madeira, assisti "in loco" a situações de miséria total, de desconforto e acabei por padecer do mesmo. A diferença é que no caso das crianças ainda é mais confuso entender que uns podem ter e esbanjar comida, deitar no caixote do lixo aquilo que não gostamos enquanto outras crianças com olhos de fome, ficam no seu sofrimento olhando os ricos comer. É uma sensação terrível e traumática, e eu já passei por isso! Mas todos nós, mais cedo ou mais tarde faremos esse acto de contrição, duvidaremos ou não de um Deus Supremo.
Deus criou para todos sem restrição, o Homem geriu a seu belo prazer, logo as questões devem ser colocadas, primeiro a nós e depois ao outro. Deus apenas aceita, deixa o Homem livre,
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